sábado, 20 de outubro de 2012

Leituras. Os Venturosos. Alexandre Honrado. «Terra nova, terra nova! Chateação, pela certa. Se ainda ao menos esses indígenas soubessem a cura para varizes e achaques de perna. Que me dizes, ó fradinho? Definitivamente imbecil, o fradinho não dizia»

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«Depois da missa houve conselho de comandantes a bordo da capitânia, a nau do capitão e navio-chefe, e resolveu-se que se mandaria um emissário ao reino e fui eu escolhido para trazer notícia do achamento e para que El-Rei mandasse com vontade expressa de mandar que se explore a nova terra que é a nosso ver de explorar. Também foi decidido que não se tomariam indígenas à força para serem enviados a El-Rei. Mas, para colher informações sobre a terra, aprendendo a língua dos seus naturais, decidiu-se que ficariam em terra alguns dos degredados que vinham na esquadra.
Carregámos água doce e lenha na embarcação que me traria e de boa vontade os indígenas ajudaram aos marinheiros e ainda a vinte e sete foi cortado um grande madeiro dos muitos que por 1á há nessas terras, e com o qual se preparou a cruz que, com as armas e a divisa reais, assinala agora a posse da nova terra para a Coroa.
Cuidamos rer sido tudo tão milagrosamente feito e a contento neste novo descobrimento de uma terra nova e, ao que parece, de riquezas tantas...
El-Rei resmungou:
 - Terra nova, terra nova! Chateação, pela certa. Se ainda ao menos esses indígenas soubessem a cura para varizes e achaques de perna. Que me dizes, ó fradinho?
Definitivamente imbecil, o fradinho não dizia.

 - Ele, por Dios!
 - Ele?
 - Sem mas...
 - Ele, mas como ele? - gritou o ex-sogro de El-Rei, recentemente libertado de tal condição pela única graça que a filha lhe dera, morrendo e soltando-o das amarras com uma coroa que temia.
 - Como ele, como logo ele?
Estavam de serão, rei e rainha, saboreando umas broas castelares, beberricando licor, e apreciando um bom fogo crepitante de lareira.
A rainha comunicava ao marido que El-Rei pretendia agora casar com uma segunda filha deles, e que ela a bons olhos a pretensão.
 - Ele?
 - Considerar que una persona o cosa no merece consideración e no tiene valor y rechazarla...
 - Despreciar? Si, si, si... Nos ha tomado el pelo a todos con sus engaños... Mira...
 - El matrimonio...
 - El matrimonio... Sacramento de la Iglesia católica que une a un hombre y a una mujer ante Dios y ante la Iglesia, con Manuel une… una hija a um asno…
 - Mas, Nandinho, filho… Aquilo é reino amaldiçoado, onde todos morrem cedo.
 - Mas, quem te garante que morra? Morrer o figurão?...
 - Até ele já está enfermo, ao que parece...
 - Se ao menos a nossa filhinha o despachar…
 - … Teremos o Mundo inteiro sob uma só coroa…
 - Belinha, minha senhora, cuidai no que dizeis, O homem tem uma sorte dos diabos, Deus me perdoe e amen... Nem era tido nem achado para rei e 1á se acha… Não. Casar outra filha com aquilo… Que desgraça!
 - Não concordo.
 - Nunca concordais com nada do que digo.
 - Pois não contais comigo em vosso leito daqui por diante. Acabou-se.
 - Acabou-se?
 - Haber llegado a un último extremo!
 - Nem brinques, filha! Eu volto atrás. E deixa de acalambrar-te…
 - Antes de mais, Nandinho, acho melhor consultar a nossa menina. Que dirá? Será seu desejo suceder a defunta? Terá coragem para enfrentar o bruto?
- Pois se considerarmos o interesse do reino, terá coragem para isso, e até para o despachar, se caso for…
 - Assim Deus nosso senhor nos ajude na despachação, e amen.
 - Casemos, pois, a nossa Maria com esse façanhudo. E que ela lhe faça a vida negra, ámen.
 - Amen e olé! Por Dios!

In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT