sábado, 13 de outubro de 2012

Diálogo do Frango e da Franga. Voltaire. «Que a gulodice provoque hediondos danos! Ouvi, no outro dia, naquela espécie de granja próxima do nosso galinheiro, um homem que falava diante de outros homens que não falavam»

Cortesia de wikipedia

«A Franga; Pois bem! Levantaram altares a esse grande homem que ensinava a verdade ao género humano e salvava a vida ao género animal?
O Frango; Não, foi horrorizado pelos cristãos que nos comem e que ainda hoje repudiam a sua memória; disseram que era ímpio e que eram falsas as suas virtudes, pois que era um pagão.
A Franga: Que a gulodice provoque hediondos danos! Ouvi, no outro dia, naquela espécie de granja próxima do nosso galinheiro, um homem que falava diante de outros homens que não falavam; exclamava que ‘Deus havia feito um pacto connosco e com os outros animais chamados homens; que Deus os havia proibido de se alimentarem do nosso sangue e da nossa carne’. Como podem eles juntar a essa salvaguarda tão afirmativa a permissão de devorar os nossos membros fervidos ou assados? É impossível, quando nos cortam o pescoço, que não reste muito sangue nas nossas veias; esse sangue mistura-se necessariamente à nossa carne; desobedecem, portanto, visivelmente a Deus ao comerem-nos. Além disso, não é um sacrilégio matar e devorar gente com quem Deus firmou um pacto? Seria um estranho acordo aquele cuja única cláusula fosse a de nos livrar da morte. Ou o nosso criador não fez qualquer acordo connosco ou é um crime que nos matem e nos ponham a cozer: não há hipótese intermédia.
O Frango; Esta não é a única contradição que reina entre aqueles monstros, nossos eternos inimigos. São há muito tempo censurados por nunca estarem de acordo seja no que for. Não fazem as leis senão para as violar e o pior é que as violam conscientemente. Inventaram cem subterfúgios, cem sofismas, para justificar as suas transgressões. Servem-se unicamente do pensamento para autorizar as suas injustiças e somente empregam as palavras para dissimular os seus pensamentos. Imagina tu que no pequeno país onde vivemos é proibido comer-nos dois dias por semana; facilmente eles encontram maneira de iludir tal lei, que, aliás, afigurando-se-te favorável, é deveras bárbara: ordena que durante esses dias se comam os habitantes das águas, pelo que os homens vão buscar as suas vítimas ao fundo dos mares e das ribeiras. Devoram criaturas que custam amiúde, cada uma, mais do que o valor de cem frangos: chamam a isso jejuar, mortificar-se. Enfim, não creio possível imaginar uma espécie mais irrisória e mais medonha, mais extravagante e mais sanguinária.
A Franga; Oh, meu Deus! Estarei eu a ver aquele vilão do moço de cozinha com o seu grande cutelo?
O Frango; Pois é, minha amiga, é chegada a nossa última hora; recomendemos a nossa alma a Deus.
A Franga: Se eu pudesse provocar ao desalmado que me comerá uma indigestão que o fizesse rebentar! Os pequenos vingam-se dos poderosos por desejos vãs e os poderosos fazem disso troça.
O Frango: Ai! Agarram-me pelo pescoço. Perdoemos os nossos inimigos.
A Franga: Não aguento; apertam-me, arrastam-me. Adeus, meu querido frango.
O Frango: Adeus, por toda a eternidade, minha querida franga».
In Voltaire, Diálogos do Frango e da Franga, Arbor Littera, 2010, ISBN 978-989-8292-39-1.

Cortesia de Arbor Littera/JDACT