domingo, 28 de outubro de 2012

Crónica Esquecida d’el rei João II. Seomara Veiga Ferreira. Leituras. «O infante Pedro amava o irmão quase ferozmente. Homem de sentimentos fortes, agarrado à família, ao lar, aos laços de sangue, educado na escola que a mãe imprimira a uma Corte vinda dos desmandos dos reis Pedro e Fernando e após uma guerra civil…»

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«Sei que Pina o repete e se limitou a repetir o que lhe mandaram dizer, mas a verdade é que El Rei era muito miúdo para requerer o que quer que fosse, a Rainha não mais viu as filhas, ficando apenas com a jovem infanta D. Joana e nunca lhe foram remetidos nem dinheiro, nem prendas de dote nem coisa alguma. Claro que D. Leonor soube também que João II de Castela, naturalmente, nem viu os embaixadores e, se os viu, o seu valido Álvaro de Luna é que os recebeu e tratou dos negócios. Era homem de confiança do Regente Pedro e inimigo natural dos Transtâmaras. A Rainha acabou a viver de esmolas, ao sobejo das sopas de viúvas e fidalgas que a ampararam até que a morte a levou talvez com a ajuda de Álvaro de Luna e a costumada ‘peçonha’.
Em Fevereiro do ano de 1441 as coisas complicavam-se em Portugal, pois quase estalou a guerra entre o conde de Barcelos e o Regente. Os ânimos acalmaram, à custa de muitas palavras e intenções dos amigos e familiares de parte a parte, mas a oposição do Barcelos ao duque de Coimbra passou a ser manifesta, sem subterfúgios. Foi o ano da chegada dos primeiros escravos negros a Sagres e da morte do homem que pintara em 1428 o retrato da filha de João I, antes do seu casamento com o duque de Borgonha.
Em Coimbra D. Isabel de Urgel certamente teria conhecimento do que se passava com a cunhada. Não sei como reagiu, se a sua alma de mulher e mãe, mais tarde também tão sacrificada, se condoeu. Talvez a mãe sim, embora D. Leonor fosse quem tivesse abandonado os filhos...
Não sei mesmo, é uma hipótese a considerar, se o Infante Pedro teria sido o grande responsável moral por essa atitude. Talvez não. Não pretendo defendê-lo, nem ninguém, nem mais tarde o farei comigo próprio, mas é bem possível que a sagaz perversidade do bastardo Afonso de Barcelos tivesse insuflado na alma da cunhada, que era uma mulher limitada e estúpida, essa hipótese. Também nunca a auxiliou depois. O que Afonso desejou nesse instante foi o escândalo, a hipótese da guerra civil, a partilha do País em duas facções, a nítida destruição dos projectos de poder do irmão. Mesmo mais tarde, para, quem sabe? – aligeirar a consciência, fez ver ao sobrinho a crueldade de Pedro para com a ‘pobre viúva e mãe d'El Rei’, não lhe explicou porque não mexeu sequer uma palha para a auxiliar. Quanto à condessa de Urgel e duquesa de Coimbra, que toda a vida se comportou com a dignidade de uma Rainha que, efectivamente, poderia ter sido, o seu contacto com o jovem sobrinho Rei não deve ter sido negativo. Depois de o destino se lhe manifestar tão avesso, como aconteceu mais tarde, este nunca a perseguiu pessoalmente nem, pelos vistos, permitiu aos Braganças um acto de crueldade gratuito. O facto de ela ser a sogra não o justifica. Portanto, D. Isabel deve ter deixado no genro boas recordações e, talvez, a memória do resquício de uma certa forma de amor maternal que tão cedo lhe fora roubado pelos azares do destino e a inexorável luta pelo poder.
Afonso de Barcelos, talvez porque o tivesse solicitado ao jovem sobrinho Rei, ou porque o Regente lhe quis acalmar a ambição (de todos os irmãos não conseguira ainda o título de duque), foi feito duque de Bragança em 1442, no mês de Maio. Em Outubro desse ano uma grande infelicidade acontece ao Regente Pedro: perde o irmão querido, seu fiel apoiante, que o adorava como se de um pai se tratasse, infante João, com quarenta e dois anos de idade, pois nascera em 13 de Janeiro de 1400 e era o mais jovem filho de D. Filipa de Lencastre e do Rei João.
O infante Pedro amava o irmão quase ferozmente. Homem de sentimentos fortes, agarrado à família, ao lar, aos laços de sangue, educado na escola que a mãe imprimira a uma Corte vinda dos desmandos dos reis Pedro e Fernando e após uma guerra civil, o Regente via naquele irmão uma espécie de filho mais velho, confidente e sucessor, a quem, inclusive, dera o lugar de condestável do Reino. Fiel, honesto, directo, de rosto limpo e olhar claro, aquele irmão iria ser o esteiro que lhe faltaria no momento próprio como, de resto, aconteceu. E interessante notar que, apesar da amizade sempre existente, é a partir da morte do irmão que Pedro se une mais ao Vaz de Almada, ao conde de Avranches.
O infante Pedro, tal como sucedera ao irmão Duarte I com a prisão e infelicidade do infante Fernando, perde um pouco da sua alma quando sabe da morte, em Alcácer do Sal, do irmão preferido. Cai doente à cama com um febrão que o ia matando. Depois praticou um erro político: transferiu para o filho do falecido, o jovem Diogo, o Mestrado de Santiago e Avis e as rendas do pai e, entre os restantes cargos, depois, o de condestável. Ora o rapaz tinha apenas catorze anos. Era demasiado jovem e inexperiente. Foi então que o conde de Ourém se opôs à nomeação. Desejava o lugar. Achava-se com direito a ele. Em Janeiro do ano seguinte à morte do infante João, o conde de Ourém entra, e tal como o pai já o fizera, em guerra com o primo. O pai, sendo duque, vinculou o título à família que era quase uma família real, rica, soberana». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.


Cortesia de Editorial Presença/JDACT