sábado, 22 de setembro de 2012

Serões na Aldeia. Poesia. Política. «Eu crendo que o lugar me defendia de seu livre costume, não sabendo que nenhum confiado lhe fugia, deixei-me cativar; mas hoje vendo, senhora, que por vosso me queria, do tempo que fui livre me arrependo»


Pintura de Maluda
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Do Tempo que Fui Livre me Arrependo
O culto divinal se celebrava
no templo donde toda criatura
louva o Feitor divino, que a feitura
com seu sagrado sangue restaurava.

Amor ali, que o tempo me aguardava
onde a vontade tinha mais segura,
com uma rara e angélica figura
a vista da razão me salteava.

Eu crendo que o lugar me defendia
de seu livre costume, não sabendo
que nenhum confiado lhe fugia,

deixei-me cativar; mas hoje vendo,
senhora, que por vosso me queria,
do tempo que fui livre me arrependo.
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"

Pintura de Maluda
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Vaga, no Azul Amplo Solta
Vaga, no azul amplo solta,
vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
a nuvem flutua calma.

E isto lembra uma tristeza
e a lembrança é que entristece,
dou à saudade a riqueza
de emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
na minha amarga ansiedade
mais alto que a nuvem mora,
está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
a alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
dor que a minha alma tem.
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

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