sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Crónica Esquecida d’el rei João II. Seomara Veiga Ferreira. Leituras. «O infante Pedro organizou a defesa do Reino: a comarca da Beira sob o comando do infante Henrique; entre Tejo e Guadiana, ao infante João; a cidade do Porto a seu homem de confiança Aires Gomes da Silva. Amieira será cercada pelo seu irmão de armas, mais velho, de larga experiência…»



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«Ele, Afonso, nesta história era lobo e era touro, atacara com as armas que tinha à mão. Mestre Tadeu, que à altura tinha uns quarenta anos, quando em 49 morreu o Infante Pedro, contou-me muitas vezes a história. Ele já residia dantes por Lisboa numas casas velhas por detrás do horto do terreno onde se construiu mais tarde o Hospital de Todos-os-Santos, embora possuísse a sua velha casa na judiaria. É um erro alguém pensar que ao Infante Pedro acariciava a ideia de um governo central fraco, de um poder real fraco, para assim poder governar à vontade. Mesmo que o poder tenha sido um dos seus sonhos, se não o maior, tal afirmação é uma redonda mentira. E a história subsequente comprovou-o bem, com a bacanal de imbecilidade que foi a governação do rei Afonso que distribuiu literalmente o reino em bocados à sua volta para comprazer a nobreza, as grandes casas da velha aristocracia (e a da nova, como os Barcelos e os Braganças) e todos os ambiciosos da sua época.
D. Leonor enviara parte do seu dote em dinheiro e as jóias para a irmã Maria, em Castela. No Crato esperava que os Infantes de Aragão a viessem vingar. O infante Pedro que, por sua mulher, era herdeiro de Aragão com seus filhos, deve ter visto neste tresloucado acto da cunhada mais que uma traição, uma provocação tremenda. O pobre prior do Crato, por de mais senil e sem saber onde se meter, mas conhecendo a sagacidade do Infante, manda-lhe um filho prestar juramento de fidelidade e depois prepara-se para recambiar a rainha para Castela, para a fronteira. No Crato, a rede de servidores do Infante seguira a infeliz Leonor de Transtâmara e esses servidores secretos do Infante mantinham-no a par de todos os actos da cunhada. Pedro, de momento, tinha o jogo ganho porque quando o velho Afonso de Barcelos perdera em Cortes, por votos, o cerceamento de poderes a conceder ao Regente, este permitir-se-ia sempre actuar como rei.
E actuou. Por isso, o irmão bastardo optou pela rebelião declarada ou semideclarada.

O infante Pedro organizou a defesa do Reino: a comarca da Beira sob o comando do infante Henrique; entre Tejo e Guadiana, ao infante João; a cidade do Porto a seu homem de confiança Aires Gomes da Silva. Amieira será cercada pelo seu irmão de armas, mais velho, de larga experiência, homem honrado, grande fidalgo que estivera em Azincourt e servira o rei de Inglaterra na Guerra dos Cem Anos, Álvaro Vaz de Almada; Belver a Lopo de Almeida e o conde de Ourém, com as forças de Lisboa, no Crato.
A rainha partiu para Castela. A rainha de Portugal abandonava o Reino, os filhos, tudo. O rei Duarte I, no túmulo, se possível fosse, teria dado voltas sobre voltas, como as daria ao saber do apoio do próprio irmão a Álvaro de Luna, inimigo figadal de D. Leonor em Castela.
 - Senhor, a rainha partiu, disse um dos seus servidores em Santarém ao regente Pedro que montara um impecável serviço de correios.
 - Foi para Castela. Abandonou tudo. Ela quer a guerra. Pedro guardou segredo. Não avisou os irmãos que, mais tarde, ainda tentaram uma aproximação, uma forma de mediação diplomática, mas o regente Pedro sabia o que queria e D. Leonor estava a mais. Apenas isso.
Os irmãos da rainha, em Castela, tão perto, deviam provocar-lhe pesadelos, mas as pedras do jogo do poder, que é sempre implacável, estavam lançadas. O homem que recusaria lhe erguessem uma estátua em Lisboa, pelos seus serviços ao reino, sabia que tudo era relativo e o poder, mesmo quando em mente se tem o esquema da união ibérica em si, nos filhos e no sobrinho rei, é mais que tudo, quantas vezes um jogo efémero, traiçoeiro e implacável.
 - Se a minha imagem ali estivesse esculpida, ainda viriam dias em que vossos filhos a derribariam e com as pedras lhe quebrariam os olhos». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT