terça-feira, 18 de setembro de 2012

A Sátira na Literatura Medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Carolina Michaëlis de Vasconcelos, em quinze artigos modestamente intitulados 'Randglossen zum altportugiesischen Liederbuch', publicados entre 1896 e 1905, estudou muitas cantigas de escárnio e maldizer, por vezes obscenas e grosseiras»


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«Nalgumas ocasiões, a sátira partia do pecador. Do pecador ou do que passava por tal. Por exemplo, ria-se um de venerarem um sapato da Virgem Maria. Se o sapato fosse verdadeiro, já devia estar podre! Pois bem: o homem caiu no chão, com um ataque, e foi ‘a çapata’ que o curou.
Martim Alvites, morador em Alenquer, mais fazia cantigas de escárnio do que de amor. Também ele andou mal, mas teve de se arrepender, só trovando a Santa Maria, no resto da vida. Um jogral ‘remedador’ imitava tudo à perfeição. Imitou Nossa Senhora, com o Menino ao colo, e o Menino pô-lo de pescoço torcido, para aprender. Nestes casos, o riso está mais nos ouvintes. É o riso e a sátira contra os incréus. Levam castigo? Bem feito!
Temos, ainda, o mundo ambíguo dos judeus e das judiarias. Vemos alguns deles a ferir um crucifixo. Escutamos algumas judias a troçar doutra, que invocava a Mãe de Deus nas dores do parto. Porém, o cómico mais burlesco vem dum bom homem a rezar a Santa Maria, no portal da igreja. Eis senão quando, vem um grande cão, chega-se a ele ‘e atal o adobou / que ouv’a leixar sas prezes’, com gáudio e troça de dois judeus.
Claro, queixou-se o homenzinho à Mãe de Deus, por assim troçarem dele os judeus, e caiu-lhes o portal em cima. Mas, desta feita, nós rimos mas é da cena do cão, a alçar a perna e a fazer o que não devera a tão fiel cristão. Vamos escutar uma série de imprecações ou pragas contra os inimigos da Virgem Maria. Estamos no reino bravio da invectiva, um ramo da sátira que não é para rir: Maldito seja quen non loará / a que en si todas bondades á. É este o refrém e o ‘maldito’ alterna com a bênção para quem a louvar. Vamos resumir: Maldito seja quem não disser bem daquela a quem nada falta de bom e digno! Maldito seja quem não disser bem da melhor das ‘donas’ e não quiser o seu amor.
No manuscrito das Cantigas de Santa Maria, temos ainda as gravuras: a mulher pelos ares, agarrada à cadeira..., a seta espetada no tabuleiro e o espanto dos que ali estão..., o homem da boca torcida a beijar a ‘çapata’ maravilhosa... Mas isto são águas doutra vertente.

Cantigas de Escárnio e Maldizer
Jean-Marie d’Heur, num estudo sobre a Arte de Trovar do Cancioneiro Colocci-Brancuti, distribui as poesias deste cancioneiro por grupos distintos e de tamanho desigual:
  • 725 cantigas de amor;
  • 504 cantigas de amigo;
  • 212 cantigas de escárnio;
  • 183 cantigas de maldizer;
  • 32 tenções;
  • 23 cantigas sob o título de Varia.
M. Rodrigues Lapa alargou a sua análise a vários cancioneiros, limitando-se às cantigas de escárnio e maldizer, a fim de reunir a vasta colectânea das Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses, com nada menos de 431 poesias deste género, na segunda edição. Porém, ao contrário de Jean-Marie d’Heur, não isola as tenções, aqui, num todo à parte. Outro era o seu fim e sabia que algumas delas são temperamentalmente iguais a outras cantigas de escárnio e maldizer, só que vêm estruturadas em diálogo mais ou menos agressivo, à maneira de certas cantigas ao desafio dos nossos dias, nas feiras e arraiais do Norte.

Carolina Michaëlis de Vasconcelos, em quinze artigos modestamente intitulados Randglossen zum altportugiesischen Liederbuch, publicados entre 1896 e 1905, estudou muitas cantigas de escárnio e maldizer, por vezes obscenas e grosseiras. Nestas Notas à margem do antigo Cancioneiro Português interpreta, sobretudo, as cantigas satíricas, recorrendo às fontes históricas para esclarecer certos pontos dessas poesias e dos seus autores». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT