segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Memorial do Convento. José Saramago. «Baltasar Sete-Sóis girou pelos bairros e praças durante toda a tarde. Foi beber um caldo à portaria do convento de S. Francisco da cidade, informou-se das irmandades mais generosas na esmola, retendo três delas para ulterior averiguação…»


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«Meteu-se Baltasar pela rua larga, em direcção ao Rossio, depois de ter entrado na igreja de Nossa Senhora da Oliveira, onde assistiu a uma missa e trocou sinais com uma mulher sozinha que dele se agradou, divertimento aliás geral, porque, mulheres a um lado, homens ao outro, recados, gestos de mão, movimentos de lenço, trejeitos de boca, piscadelas de olhos, não faziam mais, se não é pecado fazer tanto, que transmitir mensagens, combinar encontros, pactuar acordos, mas vindo Baltasar de tão longe, afalcoado do caminho, sem dinheiros para manjares-do-céu e fitas de seda, não foi por diante com o namoro, e, saindo da igreja, meteu pela rua larga, em direcção ao Rossio. Era este um dia de mulheres, como se confirmava pela dúzia delas que vinham saindo duma rua estreita, rodeadas de quadrilheiros pretos que as tocavam para a frente, com um corregedor de vara na mão, e eram quase todas louras, de claros olhos, azuis, verdes, cinzentos, quem são estas, perguntou Sete-Sóis, e quando um homem cerca lho disse, já ele estava acertando que seriam inglesas levadas ao navio donde por fraude do capitão haviam sido largadas, e que remédio agora senão irem para as ilhas Barbadas, em vez de ficarem nesta boa terra portuguesa, tão favorecedora de putas estrangeiras, ofício que se ri das confusões de Babel, porque nas oficinas dele se pode entrar mudo e sair calado, desde que antes tenha falado o dinheiro. Mas o mestre da barca dissera que eram ao todo umas cinquenta e ali não iam mais que doze. Que é das outras, e o homem respondeu, já apanharam umas tantas, mas não as levam todas, porque algumas se esconderam muito bem escondidas, se calhar a esta hora já sabem se há diferença entre ingleses e portugueses. Seguiu Baltasar o seu caminho, fazendo a S. Bento promessa de um coração de cera se lhe pusesse adiante, ao menos uma vez na vida, uma inglesa loura, de olhos verdes, e que fosse alta e delgada. Se no dia da festa daquele santo vai a gente bater-lhe à porta da igreja a pedir que não falte o pão, se as mulheres que querem arranjar bons maridos mandam rezar-lhe missas às sextas-feiras, que mal tem que peça um soldado a S. Bento uma inglesa, ao menos uma vez, para não morrer ignorante. Baltasar Sete-Sóis girou pelos bairros e praças durante toda a tarde. Foi beber um caldo à portaria do convento de S. Francisco da cidade, informou-se das irmandades mais generosas na esmola, retendo três delas para ulterior averiguação, a de Nossa Senhora da Oliveira, onde já estivera, que era a dos confeiteiros, a de Santo Elói, dos ourives da prata, e a do Menino Perdido, por alguma semelhança que consigo encontrava, mesmo lembrando-se tão pouco de ter sido menino, perdido sim, se me acharão um dia.
Caiu a noite, e Sete-Sóis foi procurar onde dormir. Já então se tinha ligado de amizade com outro antigo soldado, mais velho de anos e experiência, chamava-se este João Elvas, agora com modo de vida na rufiagem, que justamente se acoitava para a noite, estando suave o tempo, nuns telheiros abandonados, rentes com os muros do convento da Esperança, para o lado do olival. Fez-se Baltasar hóspede de ocasião, sempre era um amigo novo, uma companhia para a conversa, mas, pelo sim pelo não, dando como desculpas convir-lhe muito aliviar o braço são do peso do alforge, encaixou o gancho no coto, não querendo ofuscar João Elvas e mais quadrilha com o espigão, arma mortal, como sabemos. Ninguém lhe fez mal, e eram seis debaixo do telheiro, e ele não fez mal a ninguém.
Enquanto não adormeceram, falaram de crimes acontecidos. Não dos seus próprios, cada qual sabe de si, Deus saberá de todos, mas dos de gente principal, sem castigo quase sempre quando conhecidos os autores, e sem escrúpulo extremo da justiça nas averiguações se fora misterioso o acto.
Ladrãozito, briguento, matador de a real e meio, se não havia perigo de soltar este a língua para denunciar o mandante, esses malhavam com os ossos no Limoeiro, e ainda assim tinham as sopas garantidas, tanto como a merda e o mijo em que viviam. A pontos de há pouco tempo terem soltado uns cento e cinquenta de culpas menos pesadas, que então estavam no Limoeiro, por junto, mais de quinhentos, com as muitas levas de homens que vieram para a Índia e que acabaram por não ser necessários, e era tanto o ajuntamento, e a fome tanta, que se declarou uma doença que nos ia matando a todos, por isso soltaram aqueles, um deles sou eu.


E outro disse. Isto é terra de muito crime, morre-se mais que na guerra, é o que diz quem lá andou, e tu que dizes, Sete-Sóis, e Baltasar respondeu: Vi como se morre na guerra, não sei como se morre em Lisboa, por isso não posso comparar, mas que fale aí o João Elvas, tanto sabe de praças de guerra como de praças de gente, e João Elvas só encolheu os ombros, não disse nada». 
In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT