sábado, 4 de agosto de 2012

A Sátira na Literatura Medieval Portuguesa. Séculos XIII e XIV. Mário Martins. «Muitas das ‘Cantigas de Santa Maria’ assumem atitude polémica contra hereges, pecadores e judeus. E revelam um sorriso vitorioso pela derrota dos maus, como se o autor exclamasse; ora vejam e tenham cuidado, meteram-se com a Gloriosa, caiu-lhes o castigo em cima e foi bem feito»



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«Onde sorrimos com mais vontade é num sermão de S. Tomás de Cantuária, quando fr. Paio nos fala dum epiléptico que deitou onze rãs pela boca fora. Que significavam elas? Os poetas a contar fantasias, com voz de inchada modulação, e os jograis loquazes, habituados a viver em casa dos prelados.
Boa ironia, sim senhor! O clero também leva a sua conta, embora pequena, por se tratar de panegíricos. Eles abrem coroa só por amor das prebendas e das riquezas. E dizem: vamos abrir coroa aos nossos parentes, a fim de eles herdarem o património e os rebanhos do ‘Crucificado’, isto é, as paróquias! Ficaremos com as dízimas, oblações e primícias. Como este dominicano e Santo António, centenas doutros pregadores criticavam as fraquezas e crimes dos homens, a ferro em brasa ou com o chicote da sátira.
Perdeu-se quase tudo, mas sabemos que eles gostavam de contar histórias e exemplos, ora engraçados ora a dar a impressão de que o mundo estava perdido. A preguiça humana resistia a tudo, mas não de todo. E foi esta enorme força verbal que fez rir e chorar a Idade Média, em torno dos púlpitos, muitas vezes ao ar livre. Tais sermões não equivaliam a cantigas de escárnio e maldizer. Mas participavam, às vezes, da sua graça desbocada.

A Sátira nas ‘Cantigas de Santa Maria’
Conforme escreve José Guerrero Lovillo, os iluminadores e miniaturistas das Cantigas de Santa Maria:
  • ‘al enfrentarse con las representaciones demoníacas, lo hacen con cierto tono burlón, presagio del carácter cómico que iba a tomar en el siglo, XIV». E acrescenta, pouco depois: «En el siglo XIII, el artista se atreve a entablar coloquios con el espíritu maligno, como aquel maestro pintor de la Cantiga LXXIV, con quien el diablo hubo de reñir y le menaço muy mal por que o pintava Feo’.
Em paga, pintava ele muito formosa a Virgem Maria e era este contraste que punha o diabo fora de si. Se ao menos o pintasse regularmente! Não. Punha-o mais feio do que «outra ren». Verdade seja que nós sorrimos, acima de tudo, porque não acreditamos nesta questão entre o diabo e o pintor. Os leitores de então e os que escutavam o canto destes «milagres» também sorririam, mas por verem o diabo «mais negro» do que o pez e danado contra quem o assim representava. Era vaidoso, o maroto.
Muitas das Cantigas de Santa Maria assumem atitude polémica contra hereges, pecadores e judeus incréus. E revelam, no tom geral e no refrém, um sorriso vitorioso pela derrota dos maus, como se o autor exclamasse:
  • Ora vejam e tenham cuidado. Meteram-se com a Gloriosa, caiu-lhes o castigo em cima e foi bem feito.
Há, nelas, uma sátira implícita da maldade e da estupidez dos inimigos da Virgem Maria e um sorriso largo de como pagaram caro o atrevimento. O imperador Juliano, falso e «felon», desrespeitou S. Basílio e saiu-lhe da boca este insulto:
  • ‘Na volta, hei-de obrigar-te a comer palha!’
Pois bem, montado num cavalo branco, veio depois S. Mercúrio, por ordem de Santa Maria, e atravessou-lhe a «pança» duma lançada. Assim morreu Juliano, o ‘chufador’. Até os vocábulos são, por vezes, escarninhos.
Certa mulher da Gasconha ria-se da criada e dizia-lhe que dali não iria em peregrinação a Rocamador, a não ser que a Virgem Maria a levasse na cadeira em que ela, a mulher da Gasconha, estava sentada. Meu dito, meu feito. Voa a cadeira e vai depô-la diante do altar da ‘mui Graciosa!’ Arrependida, exclamou: Astrosa fui e o mesmo acontecerá a quem fizer como eu. Já se vê que, neste caso, aumenta o sorriso e a troça com vermos a mulherzinha assustada a ir pelos ares, um pouco à maneira das bruxas montadas num pau de vassoura. Deixemos um taful que blasfemou de Santa Maria e logo morreu. Há histórias melhores. Jogava um catalão em frente da igreja, perdeu e atirou uma seta para o céu, contra Deus e Nossa Senhora. A seta voltou e caiu precisamente no tabuleiro de jogo, tinta de sangue. Que fez o jogador? Entrou para religioso, em ordem ‘forte’ e Santa Maria lhe perdoou.
Talvez o auditório pensasse, ao findar a cantiga. Escapou de boa! O que nos espanta é o enorme poder de aceitação, implícito nestas cantigas. Mas como eram a favor de Nossa Senhora, os ouvintes escutavam-nas com ternura e punham-se a favor da ‘Gloriosa’ e contra os blasfemos, indignando-se contra os pecadores e rindo-se, por vezes, dos castigos. Ou melhor, com os castigos». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT