quinta-feira, 26 de julho de 2012

Os Descobrimentos e a Economia Mundial. Vitorino Magalhães Godinho. «Mas do século XI no ocaso ao século XIII, lentamente, insidiosamente criam-se novas condições culturais, a par e passo com o renascimento urbano. Os meios que sabem latim dispõem de um cabedal científico caldeado das culturas indiana, persa e muçulmana que contrasta…»


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«Modernidade ou medievalidade dos séculos XV e XVI: qualificações demasiado globais, de flagrante imprecisão, para nos servirem de ferramenta na análise da expansão europeia que então se processa. Pense-se o que se pensar dessa controvérsia sempre em aberto, alguns factos são incontestáveis: ao desenrolar do fio dos anos a carta do globo é desenhada, o homem aprende a situar-se no espaço, a sua maneira de sentir e de entender as próprias relações humanas é impregnada pelo número, ao mesmo tempo que pela consciência da mudança; a pouco e pouco cria-se um critério para distinguir o fantástico do real e o impossível do possível; transformam-se, em complexidade contraditória, motivações e ideais; a produção e a circulação dos bens multiplicam-se, o mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução económica, forma-se o Estado burocrático e centralizado de matiz mercantilista. Na realidade, entre o século XI e o XVII, não é uma, são várias as revoluções intelectuais e de estrutura social.

O Espaço
Quer-se a medida das transformações? Aproximemos quatro ou cinco mapas-do-mundo a um século de intervalo de uns para os outros. Até fins do século XIII, quer se trate dos mapas em forma de ferradura, como o de Albi do século VIII, predominantes na Alta Idade Média, quer dos mapas ovais, de que podemos apresentar como exemplo o do monge Beato de cerca de 776 (conhecido por reprodução de crrca de 1050), quer, mais tardios, dos ‘mapas do T dentro do O’, não há uma representação da terra mas uma enumeração geográfica combinada com um sistema de convenções simbólicas. Falta qualquer disposição relativa das terras segundo as direcções do espaço, isto é, não há qualquer preocupação de as arrumar segundo ficam a Norte ou a Sul, a Leste ou a Oeste; não há, a mínima atenção às distâncias, nem sequer às dimensões relativas, ao menos presumidas; aproximam-se terras afastadas, separam-se terras contíguas. Numa deformação do mapa-do-mundo de Beato que aparece num códice parisiense do século XI ou XII a Índia está a Norte da Líbia, por seu turno a Norte da Etiópia e a Oeste da África, que tem a Judeia e a Palestina a sul e é separada por um ‘mare rubrum’ de Toledo e da Galiza! Atente-se na pintura de então: também o tema não é tratado segundo o espaço da percepção sensorial ou da geometria da experiência corrente, a euclidiana, mas sim numa disposição que obedece a uma hierarquia de valores, o transcendente mais importante, logo maior, que o terreno, as personagens do topo da escala social maiores que as inferiores; não interessa, para a construção do quadro, a relação ‘estar mais longe’ ou ‘estar mais perto, percepcionar visualmente mais pequeno ou maior, mas o conjunto das relações simbólicas, a divindade e os homens, o rei e os vassalos.

A revolução cultural dos séculos XII e XIII. B.N. de Paris
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Mas do século XI no ocaso ao século XIII, lentamente, insidiosamente criam-se novas condições culturais, a par e passo com o renascimento urbano, a teia de laços mercantis inter-regionais e mesmo internacionais, o grande dilatar das arroteias. Quando se abre a era de Duzentos, na Cristandade, os meios que sabem latim dispõem de um cabedal científico caldeado das culturas indiana, persa e muçulmana que contrasta, e de que maneira, com o legado latino-medieval de fantasias e, incertezas, de esqueléticos e frustes rudimentos com que até aí tinham vivido. Os seus elementos essenciais afiguram-se-nos ser os seguintes:
  • a aritmética e a álgebra indiano-muçulmanas,
  • a geometria de Euclides, reencontrada a exigência da demonstração e o sentido da problemática,
  • a astronomia de Ptolomeu com os seus prolongamentos árabo-judaicos quer astronómicos quer astrológicos,
  • as tábuas astronómicas muçulmano-judaicas,
  • os tratados ou livros do astrolábio e outros instrumentos astronómico-geométricos,
  • a óptica de Apolónio e de Ptolomeu,
  • a biologia de Aristóteles,
  • a medicina de Hipócrates, Galeno e Avicena.
Num Saltério iluminado em Paris no segundo quartel do século XIII a abertura representa um astrónomo (astrólogo) medindo uma altura com o astrolábio, sentado entre um copista e um calculador: civilização da escrita que busca a medida e utiliza a matemática e instrumentos de observação quantitativa. A revolução intelectual está aí figurada». In Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Editorial Presença, Lisboa, 1984.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT