segunda-feira, 16 de julho de 2012

O Fantasma de Inês de Castro. Entre a lenda e a literatura. Siglo de Oro. Relações Hispano-Portuguesas no século XVII. Patrizia Botta. «Existe um segundo tipo de fantasma de D. Inês mais dramático e interessante, porque enceta um diálogo directo com o monarca Pedro. Este fantasma encontra-se apenas esboçado e mesclado com uma ressurreição insinuada do corpo da personagem»




Cortesia de costapinheiro e jdact

«Em todos eles se recorre ao artifício convencional de colocar o relato na boca de uma mulher, na primeira pessoa gramatical e com adjectivos no feminino, segundo uma tradição bem enraizada tanto na lírica hispânica de tipo popular como no “Romancero”. E nos três textos a mulher que fala é uma defunta que evoca a sua vida e as razões do seu homicídio. É pois, um espírito que fala no inferno, ou num morto que fala segundo uma modalidade também frequente no “Romancero”. Com efeito, encontramo-nos já perante um primeiro tipo de fantasma de Inês, que, ainda depois de morta, continua a actuar diante dos olhos do leitor: neste caso, para narrar, a partir de um longínquo Mundo do Além, uma história que se propõe como exemplar.
Existe, no entanto, um segundo tipo de fantasma de D. Inês mais dramático e interessante, porque, em vez de um monólogo, enceta um diálogo directo com o monarca Pedro. Em algumas obras este fantasma encontra-se apenas esboçado e mesclado com uma ressurreição insinuada do corpo da personagem, como, por exemplo, na visão de Anrique da Mota, onde Inês, que já parece estar morta, ressuscita por um momento para recomendar a sua alma a Pedro, perante a lamentação e as promessas de vingança que lhe faz o seu amado:
  • com estas fortes e nojosas conjurações do verdadeiro amor ‘os espititus uitais’ daquella senhora que ‘quasi de todo eram fora’ de seus naturais aposentos / ‘tornaram a Reuiaer’ / e ella sintindo os Reais braços do seu verdadeiro amiguo e senhor / ainda que estava com mortal fadigua abrio os olhos / e uendo ha cousa a que moor bem queria dise com uoz baixa e mui cansada minha alma lembaryuos della / e deu hum grande sospiro que do Intimo e secreto do seu ferido coração sahio com que acabou despirar.
Como se vê nas frases sublinhadas, há uma certa ambiguidade na expressão, e ficamos suspensos entre o significado, por um lado, desses ‘espíritos vitais’ que ‘tornaram a reviver’, que nos fariam pensar num fenómeno sobrenatural a meio caminho entre a ressurreição, o reviver, e a aparição, os espíritos e, por outro, desse ‘quasi’ que põe em dúvida a morte já acontecida e vai insinuando que se trata sobretudo do último esforço de uma moribunda, o que aliás parece ser confirmado pela frase fìnal: ‘com que acabou despirar.

Noutros textos, pelo contrário, a ambiguidade não existe e torna-se mais claro ser a sombra de D. Inês que, depois de morta, ora numa dimensão onírica, ora vinda do mundo dos mortos, ora no mesmo plano das personagens vivas da ficção, aparece ao rei Pedro, não para pronunciar apenas uma frase, mas para dialogar com ele mais demoradamente.
Diga-se de passagem que o fantasma é apenas uma das manifestações do maravilhoso e do sobrenatural que tão fecundos foram nas obras inesianas: basta pensarmos nos frequentes sonhos premonitórios ou presságios com que D. Inês vê prefigurada ou simbolizada a sua morte, ou uma situação de perigo iminente (nas obras de António Ferreira, Bermúdez, Mejía de la Cerda e Vélez Guevara). Ou pensemos também nessas visões alegóricas através das quais outras personagens conseguem ver de longe a morte de D. Inês, ou entrar em contacto com o mundo do além, como sucede nas obras portuguesas de Anrique Mota e de Soares Alarcão. O fantasma é, pois, um elemento mais desse plano do maravilhosor, quase óbvio numa história como a de D. Inês, que se vai enriquecendo de matizes lendários, quando não macabros e geradores de um clima de horror generalizado.
Plenamente de acordo com essa atmosfera sombria que as caveiras e os esqueletos criam em cena, terreno fértil para a insistência superlativa na mesma linha de terror, o fantasma de D. Inês apresenta-se e aparece-nos cingindo-se estritamente à tradição folclórica mais comum. Na superstição popular, os fantasmas tinham por costume aparecer nas horas mais temíveis e nos lugares mais lúgubres e assustadores, como as noites escuras e sem lua, os cemitérios e as casas abandonadas, bem como ainda no próprio local do crime o que, as mais das vezes, faziam envoltos numa luz espectral. Outras vezes apareciam em sonhos, e, por fim, noutras ainda, sob a forma de uma voz». In Patrizia Botta, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT