terça-feira, 17 de julho de 2012

Macau Histórico. Edição de 1926. Carlos Montalto de Jesus. «Em quase todas as narrativas das primeiras relações dos portugueses com a China, Simão Andrade é descrito como um odioso monstro, inumano e imoral. Para as suas atitudes despóticas em Tamou não se encontra justificação nem na intolerância exasperante dos mandarins, nem na abundante pirataria nem, ainda, na necessidade da criação de uma praça forte…»



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«A anexação de Tamou, aparentemente projectada quando Jorge Álvares lá erigiu o “padrão”, foi intrepidamente tentada por Simão Andrade, outro herói de Malaca, que, em 1518, chegou a Tamou com uma nau e três juncos. Com o propósito de defender o local dos ataques de piratas construiu um forte e, como elemento dissuasor, levantou uma forca numa ilhota adjacente onde é suposto ter sido executado um delinquente com todas as impressionantes formalidades de uma execução em Portugal, apropriação de soberania que produziu grandes suspeitas no governo chinês. Enquanto várias cidades eram saqueadas pelos piratas nativos, em nome dos estrangeiros, os portugueses tornaram-se ainda mais odiados devido aos clamores sensacionalistas de que muitos rapazes e raparigas, de boas famílias cantonesas, tinham sido raptados e vendidos a Simão Andrade a fim de serem, mais tarde, assados e comidos. Os preconceitos xenófobos, assim maldosamente despertados, foram ainda aumentados por outras medidas arbitrárias: Simão Andrade que controlava o comércio e a navegação de Tamou, recusou-se a pagar direitos e maltratou gravemente um funcionário de alfândega. Foi, obviamente este Andrade quem sovou um mandarim e, com isso, provocou a animosidade de que resultou, segundo Gaspar Cruz, a sua retirada em desespero com perda de algumas naus, na mesma altura em que, como relatou Couto, era afixado um édito imperial em grandes caracteres dourados, sobre a porta de Cantão, proibindo o acesso a “homens de longas barbas e grandes olhos”. Em quase todas as narrativas das primeiras relações dos portugueses com a China, Simão Andrade é descrito como um odioso monstro, inumano e imoral. Para as suas atitudes despóticas em Tamou não se encontra justificação nem na intolerância exasperante dos mandarins, nem na abundante pirataria nem, ainda, na necessidade da criação de uma praça forte portuguesa em costas tão perigosas e inóspitas; e embora se dê facilmente crédito a todas as difamações, as alegadas iniquidades nem sequer são conformes com os antecedentes, dignos de menção: Simão Andrade tal como Fernão Peres Andrade foi um dos distintos oficiais cujo sentido de justiça e humanidade impeliu a que protestassem contra a execução ultrajante de Ruy Dias. Por essa razão, os Andrades foram postos a ferros e só reabilitados pelo próprio Albuquerque em face das suas notáveis qualidades. Em 1521, outra frota apareceu em Tamou: um navio mercante de um importante nobre e vários juncos, incluindo o do pioneiro, que por ali morreu pouco depois e foi enterrado junto ao” padrão” que havia erigido, o marco mais remoto alguma vez levantado por um navegador português. À chegada, as embarcações foram mandadas para o largo porque conforme foi alegado, à morte de um imperador chinês todos os estrangeiros têm de sair do império. Recusando partir, os portugueses ficaram na defensiva. Uma frota imperial de cinquenta velas cercava o porto enquanto vários portugueses, a caminho de Cantão para fins comerciais, eram detidos e encarcerados. Outros, que vinham do Sião e de Patane, foram atacados, mortos ou capturados com as suas embarcações. Dois outros juncos chegaram então e Tamou: um deles, bem equipado, pertencia a Duarte Coelho, que tendo sido atacado enquanto tentava resolver as desavenças, fez estragos com a sua artilharia; os chineses tentaram ataques esporádicos durante o cerco mas não se atreveram a aproximar-se e, depois de um combate sangrento, foram enterrar os mortos numa baía a três léguas de distância, altura em que uma nau e um junco se esgueiraram para Tamou, onde a situação era precária. Os juncos estavam falhos de homens, não tendo qualquer deles mais de oito portugueses a bordo. Os capitães reuniram-se para consultas. Duarte Coelho, que chefiava o grupo, juntou, então, os homens em duas naus e no seu próprio junco e, a coberto da noite levantaram âncora depois de um cerco de quarenta dias. Na manhã seguinte, 8 de Setembro de 1521, as três embarcações encontravam a frota imperial. Seguiu-se uma refrega violenta durante a qual, com romântica devoção à Virgem, tão característica dos navegadores portugueses, Duarte Coelho ordenou que se fizesse um apelo geral à celeste protectora, pois era o dia da sua natividade; e a tempestade que oportunamente se levantou foi ingenuamente considerada como um seu auxílio, porquanto o temporal ajudou decisivamente os devotos da virgem na sua milagrosa fuga, em comemoração da qual Duarte Coelho, à chegada a Malaca, fundou um asilo em honra da Salvadora.
Entretanto chegou a Nanquim um emissário, reclamando a protecção do imperador para o rajá de Bintam, um vassalo do ex-sultão de Malaca; e em consequência das intrigas deste emissário, o vice-rei de Nanquim comunicou ao imperador que, com o pretexto de comerciar, os “francos”, assim eram chamados então os portugueses na China, tinham vindo espiar o ponto mais vulnerável do Império, com vista a estabelecer aí mercadores e tomar depois o local pela força das armas, como haviam feito na Índia e em Malaca». In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926, Macau Histórico, 1ª edição em Português, 1990, Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT