quinta-feira, 19 de julho de 2012

Herculano e a Geração de 70. João Medina. «Ambos povoam aquela pátria espiritual de que falava Sérgio, e onde o mesmo Sérgio, de par com outros espíritos inteiros como Mouzinho da Silveira ou o referido João de Castro, personalizam aquilo que alguém definiu como ‘o arquétipo’, na acepção de ‘Jung’ de certa exemplaridade portuguesa»



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Herculano visto por Antero, Eça, Guerra Junqueiro e Anselmo Andrade
«Antes mesmo de se conhecer o juízo de Antero sobre Herculano, nos assalta logo como evidente que estas duas figuras, a daquele que se suicidou por ‘isolamento’, como o disse Laranjeira e o repetiu Unamuno, e a do que consumou mesmo o gesto absoluto da morte voluntária, tinham forçosamente de convergir, já que partiam de pressupostos éticos, emotivos e intelectuais semelhantes: o solitário de Vale de Lobos e o eterno solitário em-toda-a-parte que foi Antero tinham de se encontrar na mesma recusa das concessões ao século e aos interesses rasteiros ou mesmo medianos da vida quotidiana, na mesma estóica, vertical e granítica inteireza moral de quem prefere a total ausência aos compromissos, às presenças inautênticas. Ambos ostentavam, num século rasteiro e chatim, as barbas lendárias de João de Castro e por força acabariam de mal com os homens por amor ao ideal ou de mal com a ideia por amor aos homens. Ambos desistiram: o primeiro retirando-se para uma existência marginal, mas, apesar de tudo, útil e produtiva de lavrador que, ao menos, dá os frutos das suas courelas ao País; o segundo partiu de mãos vazias, afastando-se em radical ruptura com o mundo sensível, despojando-se de todas as humanas paixões depois de ter percorrido degrau a degrau a escada estreita da ilusão. Ambos povoam aquela pátria espiritual de que falava Sérgio, e onde o mesmo Sérgio, de par com outros espíritos inteiros como Mouzinho da Silveira ou o referido João de Castro, personalizam aquilo que alguém definiu como ‘o arquétipo’, na acepção de ‘Jung’ de certa exemplaridade portuguesa. Esta inegável convergência tinha de os irmanar. Falando de Antero no seu opúsculo acerca da proibição das Conferências Democráticas, diz Herculano que o jovem ‘condottiere’ do Casino era ‘uma destas índoles nobremente austeras que cada vez se vão tornando mais raras’. Por seu turno, escrevendo em Setembro de 1877 sobre o então desaparecido Herculano, Antero publicava no nº 2 de “Os Dois Mundos”, revista luxuosa editada em Paris pelo conferencista frustrado de 1871, o judeu Salomão Sáragga, um curto artigo onde se evoca o velho roble fulminado pelas ‘Parcas’, com o calor e a nobreza que se adivinham.
Depois de começar por dizer que a morte de Herculano é, mais do que um luto para a literatura, um ‘verdadeiro luto nacional’, Antero afirma ser ele o último representante duma ilustre geração em quem ‘o forte génio português reverdeceu ainda neste século com uma seiva tardia’. Mais do que um grande escritor, tinha sido ‘um grande homem’, um desses que sintetiza o carâcter duma raça, o ‘representante do génio da sua nação’. Na fisionomia moral de Alexandre Herculano, prossegue Antero, ‘há certas linhas que fazem lembrar o perfil enérgico e simples dos heróis típicos da nacionalidade portuguesa. Pertencia a essa grande linhagem, que acabou com ele, e o seu século, admirando-o, considerava-o todavia com um certo espanto ininteligente, como se sentisse vagamente que aquele homem pertencia a um mundo extinto, um mundo cujo altivo sentir já ninguém compreendia., Daí, continua o chefe espiritual da Geração Nova, essa exemplar incompreensão mútua entre o seu tempo e o homem que nele viveu, esse .dissentimento que estava na natureza das coisas’.
E acrescentava:
  • Não nos cabe a nós ser juízes entre um grande homem e uma época, que tantos aclamam gloriosa, enquanto outros persistem em tê-la por mesquinha. A história (...) dará talvez razão, ao mesmo tempo, à época, que não podia ser maior nem melhor do que as circunstâncias a fizeram, e ao homem nobre e sincero, cuja altiva integridade repugnava invencivelmente a que pactuasse com o abaixamento moral dos contemporâneos, embora tal abaixamento lhe parecesse providencial, preferindo a atitude isolada e austera do protesto e as más vontades que ela provoca nos caracteres vulgares, à influência e dominação alcançada pela conivência com as paixões, os desvarios e os vícios da época. Há glórias mais brilhantes e ruidosas; nenhuma pode haver mais pura.
In João Medina, Herculano e a Geração de 70, Edições Terra Livre, Lisboa, ano IV da Liberdade, 1977.

 
Cortesia de Terra Livre/JDACT