segunda-feira, 16 de julho de 2012

Fernando Pessoa. Rei da Nossa Baviera. Eduardo Lourenço. «O mito-Pessoa é a sombra inevitável do fantástico e justificado Pessoa-mito. A todos os fantasmas de um mundo em mutação vertiginosa e que voluntariamente se crucificou nas suas contradições, redimindo-as pela invenção de poemas, claros como uma fotografia»


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«Lugar da morte do poeta e não dos monstros, reais ou fictícios, que ele se inventa para esquivar o único combate que merece esse nome, aquele que exige do poeta a palavra onde se inscreve o esplendor anónimo do mundo ou o seu enigma, Guerra Junqueiro fez sonhar a sua época, mas quase só de sonhos triviais ou óbvios. Bebeu a sua glória em vida. A de Pessoa cresceu na sombra, foi deslumbramento de poucos antes de se tornar nesta maré equinocial que nos perturba.
O mito-Pessoa é a sombra inevitável do fantástico e justificado Pessoa-mito. É em nome deste que se pode e deve resistir à idolatria de que o primeiro é objecto. Mito da existência discreta que se ofereceu a todas as sensações, a todos os sentimentos, a todas as ideias, a todos os fantasmas de um mundo em mutação vertiginosa e que voluntariamente se crucificou nas suas contradições, redimindo-as pela invenção de poemas, claros como uma fotografia. Desse modo, cada um de nós as pode contemplar sem ser destruído por elas como ele o foi. Todos os poetas conferem aos sonhos ou pesadelos comuns a forma que os redime. Mas Pessoa insuflou nessa missão um suplemento sacrificial, tornando-se “ninguém” para que nós, ‘toda a gente’, pudéssemos visitar a sua barca de melancolia sem reparar, como ele, que a paisagem é uma colecção de imagens sem sentido e a viagem perdida de antemão. Tudo isto, porém, justificaria apenas que o tomássemos pelo grande poeta romântico que não tivemos, um Antero de Quental um pouco mais moderno, por exemplo, ou um Teixeira de Pascoaes menos difuso, e não pelo criador da Modernidade poética, se é a ele, como parece, que devemos a metamorfose da ideia mesma de Poesia. Em que consiste, realmente, o seu estatuto mítico de poeta da Modernidade?

Pode discutir-se se Fernando Pessoa é ou não, com Camões, ‘o maior’ poeta de língua portuguesa. O que é difícil é contestar que a sua poesia seja uma “poesia-outra”, a primeira, entre nós, que vive, ao mesmo tempo, da agonia da imagem do Poeta como criador soberano da sua poesia e da Poesia como pura modulação do sentimento e da emoção espontâneos. Sentimentos, emoções e expressão ‘comunicavam’ quando o Poeta se sentia não apenas um “eu” inspirado, mas um eu “eleito”, imaginando uma ponte directa entre as suas emoções e o verbo que as modula. Pessoa retirou essa ponte, fez desse exercício a sua “arte poética” e não há ninguém que leia letra redonda no nosso país que não saiba de cor o famigerado ‘o poeta é um fingidor’ etc., esquecendo, em geral, que essa arte poética significava, para quem assim se exprimia, o impossível sonho de uma “poesia sem fingimento”. Quer dizer, um contacto entre o homem e a sua verdade, ou antes, entre o homem e a Verdade, no plano das sensações, dos sentimentos, das emoções e das ideias, tão misterioso como o que une o animal à natureza e que só a nós, seres conscientes, nos é vedado. E por nos ser vedado somos, queiramo-lo ou não, “naturalmente infelizes”, infelizes por não sermos “naturais”, como o gato que brinca na rua como se fosse na cama. Ou então, “imaginariamente felizes”, como Caeiro, despindo-se de si, palavras e ideias, para se deitar na erva quente da realidade. Este é o fundamento único da visão de Pessoa e parece impossível como uma visão, ao mesmo tempo tão desolada e tão intelectual, pôde servir de pedestal ao “mito-Pessoa”. Temos de concluir que tal visão, simples por complexa, encontra algum eco na experiência humana comum para nos ter convertido em ouvintes emocionados de uma música que integra no seu ritmo a compaixão pela “solitude” das estrelas ou a nostalgia pelo pequeno navio que entra na barra do Tejo carregado dos nossos sonhos impossíveis de fundadores de Império. Na verdade, não é a solidão das estrelas, nem o barco anónimo, nem objecto algum, que importam ao poeta de “Tabacaria” ou da “Ode Marítima”, mas a ocasião que lhe oferecem de se descobrir, olhando-os, “ser consciente da sua própria finitude infinita”, prisioneiro do labirinto do Tempo». In Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, Rei da Nossa Baviera, Gradiva, 2008, ISBN 978-989-616-242-9.

Cortesia Gradiva/JDACT