quinta-feira, 12 de julho de 2012

Elisa Neves Travessa: Jaime Cortesão. Política, História e Cidadania. «(...) uma peça em que o autor se debate, e é talvez a sua própria consciência que põe a nu; em que sentimos que há alguém que grita, que se desespera, que se despedaça. (...) eu entendo que a liberdade e a felicidade humanas dependem simplesmente do esforço e da vontade dos homens»



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«Depois das incursões pelo drama de temática histórica, que conheceu inúmeros cultores e ampla divulgação no século XIX, Cortesão escreve “Adão e Eva”, representado pela primeira vez em 20 de Maio de 1921, no Teatro Ginásio, em Lisboa. Divergindo dos dramas anteriores, da exaltação heróica, épica e epopeica, nesta obra o autor dá voz aos anseios de justiça e à aspiração latente de um mundo melhor, que nos vícios de uma orgânica social defeituosa encontravam a sua mais legítima justificação. É um drama de intervenção social, que versa a actualidade, onde o autor exprime uma tendência progressivamente realista ‘a síntese literária de toda evolução decorrida entre o entusiasmo juvenil universitário de ideário acrata e as grandes provações sofridas na Guerra’.
Embora versando outra temática, a essência da função do teatro, enquanto veículo de cultura e de aperfeiçoamento moral e social, mantém-se no espírito do autor, e insere-se na constante intervenção cívica que caracteriza a sua acção e as suas produções. Já não encontramos o recurso a génios do passado histórico, os protagonistas da acção são figuras actuais, heróis da sua contemporaneidade, que comungam dos mesmos ideais. Apresenta-nos um cenário naturalista da época, em que os perfis do Infante e Egas Moniz, homens predestinados e de acção, estão presentes no protagonista da peça: Marcos. Este, tal como Cortesão, combatente da Grande Guerra, revolucionário e idealista, desiludido com o ambiente social, político e moral do Portugal do pós-guerra'". Uma empatia vislumbrada por Raul Brandão no artigo que redige no âmbito do inquérito à peça Adão e Eva, promovido pelo Diário de Lisboa: ‘(...) uma peça em que o autor se debate, e é talvez a sua própria consciência que põe a nu; em que sentimos que há alguém que grita, que se desespera, que se despedaça’. Vincula-se o protagonista ao autor, numa simbiose e miscigenação claramente patenteadas nas palavras de Marcos: ‘(...) eu entendo que a liberdade e a felicidade humanas dependem simplesmente do esforço e da vontade dos homens’. Uma esperança renovada nos poderes reformadores da vontade e a tentativa, ao longo de toda a peça, de definir o ‘conceito heróico de liberdade’ e de revolução… Este drama envolve um debate em torno da questão social, nomeadamente nas consequências da intervenção de Portugal na I Guerra. Nas palavras de Marcos surge a revolta e a indignação: a ‘figura do revolucionário’ declamava no palco o que os idealistas proclamavam na vida, ‘continuamente feridos pela rudeza contundente dos interesses e das paixões ruins’. E por isso a ‘tragédia espiritual de Marcos’ era também a expressão da tragédia da ‘alma de poeta e de cidadão’, do autor da peça.
Esta inflexão do autor no campo da produção dramática acompanha as novas opções no âmbito da intervenção cívica e da própria visão da história. O projecto idealista da Renascença, surge de forma mais concretizada e pragmática nos objectivos que definiram a acção da Seara. Uma intervenção na vida social para atingir também alguns objectivos políticos, mas seguindo a via da educação moral e cívica, ‘fora do campo estrito das escolas políticas, dos dogmas e programas partidários’, de forma a construir ‘uma sociedade mais justa e uma ordem mais perfeita’. Um conceito de revolução, devedor de Antero, bem expresso nas palavras de Marcos que proclama a supremacia da ‘grande revolução nas almas’: ‘as almas também estão cercadas de muralhas; e a grande revolução a fazer é mais lenta e tem que realizar-se dentro delas’. Neste sentido, há que integrar a individualidade do autor na construção deste drama: pela valorização do sonho e do esforço criador projectados de forma heróica ao longo da peça no papel do seu protagonista: ‘Fui soldado voluntariamente. Combati pela humanidade’.

A ‘estética naturalista’, que desde os finais do século XIX vinha progressivamente a afirmar-se em Portugal, encontra eco em Adão e Eva, quer através do tipo de personagens quer pelos ambientes recriados. Curiosamente é nesta altura que Cortesão, director da Biblioteca Nacional, publica os primeiros trabalhos de investigação e interpretação histórica sobre a época dos descobrimentos, distantes do tom épico, lírico, heróico e lendário das suas primeiras produções dramáticas».  
In Elisa Neves Travessa, Jaime Cortesão, ASA Editores, Setembro de 2004, ISBN 972-41-4002-4, obra adquirida e autografada em Fevereiro de 2006.

A amizade de Elisa
Cortesia de Edições ASA/JDACT