quinta-feira, 5 de julho de 2012

Cultura. Civilização. António José Saraiva. «O desejo tem que ver com a afectividade e não com a razão. Mas o número tem uma aparência de objectividade que muitos tomam como ‘científica’, e que é apenas quantitativa. Este método de decisão é tão ‘científico’ como os métodos mágicos de cura usados pelos xamãs em sociedades arcaicas»


jdact

«Diziam os Gregos que o homem é um animal ‘político’, o que significa que é um animal social, porque político deriva de ‘polis’, palavra grega que designa cidade. Todavia, a política não pode considerar-se uma ciência, porque as sociedades não podem ser consideradas globalmente de fora. Cada homem é parte da cidade, só pode observá-la parcialmente segundo o seu ponto de vista individual e de grupo. A vida política é o encontro e o desencontro dos vários pontos de vista e interesses. Em última análise, esse encontro e desencontro é arbitra do pela força das armas, ou pela diplomacia, que se apoia nessa mesma força. A sorte da guerra depende de vários factores, um dos quais é a tecnologia dos países em conflito. Outro factor, também de primeira importância, é a vontade colectiva dos diferentes povos, que não é possível medir objectivamente. Um exemplo recente dessa vontade colectiva é a fundação e sobrevivência do Estado de Israel após a Segunda Guerra Mundial.
Dessa ‘vontade’ incomensurável depende também a vida das várias nações conhecidas: a sua extensão (parte), a sua riqueza, a sua combatividade, etc. Mas dentro de cada nação também os pontos de vista individuais e grupais variam, e não há qualquer maneira de os arbitrar objectivamente. Por isso a orientação política das nações depende da força dos diferentes partidos em luta. A relação de forças pode definir-se numericamente em alguns casos, e para isso se realizam, em certos países, consultas de opinião que se chamam eleições. A luta não é, decidida pela força física, mas pelo número, que é a medida quantitativa dos grupos ou partidos concorrentes, cada um com sua proposta. A proposta mais votada é a vencedora. Isso não significa que seja a mais racional e objectiva, mas apenas que é, a mais desejada, ou a desejada por maior número de pessoas.
O desejo tem que ver com a afectividade e não com a razão. Mas o número tem uma aparência de objectividade que muitos tomam como ‘científica’, e que é apenas quantitativa. Este método de decisão é tão ‘científico’ como os métodos mágicos de cura usados pelos xamãs em sociedades arcaicas. Do ponto de vista científico, as opiniões de maior número são frequentemente as mais erradas. No entanto, o número pode servir de base convencional a uma decisão, à falta de outra melhor, e, de qualquer modo, traz menos custos que a guerra como método de escolha. O método de escolha do presidente dos Estados Unidos da América é preferível, nessa perspectiva, ao da sucessão dos imperadores romanos, dependente de guerras intermináveis, o que não significa que o resultado de um ou de outro seja o melhor. Ambos dependem, em larga medida, do acaso.
A eleição é um método pacífico convencional, mas há outros, como, por exemplo, a hereditariedade, em que se baseia a realeza hereditária. Mas este tem, do ponto de vista do monarca, um fundamento instintivo, que é o sentimento de posse, o fundamento da propriedade. Confunde-se facilmente propriedade com soberania, o direito sobre as coisas com o direito sobre os donos das coisas. Outra convenção é a delegação da soberania ‘divina’ ou ‘popular’ em virtude de um pacto tácito e imaginário. A ‘realidade’ do poder de facto está fora dessas suposições e pouco sabemos a esse respeito. As decisões colectivas, seja qual for a sua justificação jurídica, resultam, em última análise, de um acaso imprevisível. O jogo do acaso decorre na arena da história.

O Problema do Progresso
Os homens nunca reconheceram o acaso como agente da história. Houve em todas as épocas teorias da história com princípio, meio e fim. Antigas teorias da história vêm o futuro como a vitória do deus tribal. Esta é a vitória da própria tribo, que o deus protege, e, portanto, para a tribo beneficiada, a vitória do bem. Mas o deus tribal sofre metamorfoses ao longo do tempo. Entre os Semitas chamava-se Jahveh ou Alah, entre os Gregos era uma equipa, Zeus e os seus pares, os deuses celestes ou olímpicos, vencedores dos titãs, que eram os deuses informes da Terra». In Cultura, António José Saraiva, Difusão Cultural, 1993, ISBN 709-972-154-7.

Cortesia de Difusão Cultural/JDACT