sexta-feira, 13 de julho de 2012

Crónica Esquecida d’el rei João II. Seomara Veiga Ferreira. Leituras. «… aquele que fechou os olhos negros em Alvor, num pôr do Sol como só os há nas praias do Sul de Portugal, já com a pureza e a luminosidade das cores do céu do Mediterrâneo e da antiga África romana»


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«Como por quase todas as mulheres que conheci, e até pelas que detestei, sinto uma certa piedade. São tempos difíceis estes em que vivemos e ao longo dos séculos as mulheres têm sido sempre as maiores vítimas. Esta Rainha sem marido, metida numa intriga que a ultrapassava, recentemente marcada pelas dores do parto e as agonias de um quotidiano feroz, fez-me sempre uma certa pena. Guardo dela as descrições de uma pobre mulher sem qualquer tipo de beleza excepcional, mas meiga, indecisa, absolutamente indefesa também e a quem o cunhado nunca perdoou os defeitos, a arrogância, as desconfianças e a inimizade contra a sua própria mulher e a quem retirou tudo, até o favor do regresso para perto dos filhos, depois da sua precipitada fuga para Castela. Creio que a sua presença então, em Portugal, nunca interessou a ninguém, nem aos seus apostados e conhecidos apoiantes.
Ninguém a desejava. Ela representava a peça inerte, insignificante, que se pode e deve destruir porque já não serve a ninguém. De resto, teve o cuidado de não proferir nunca uma frase inteligente nem praticar uma única acção conveniente e credível da sua competência política. Isso matou-a no jogo de vida e de morte desde as Cortes de Lisboa até ao seu fim verdadeiro, em Fevereiro de 1445, em Toledo, talvez envenenada. Faminta, na mais desgraçada e abjecta penúria, longe dos filhos, do amor fosse de quem fosse, como uma cadela sem dono, assim se finou a Rainha de Portugal, que foi a avó materna do grande Rei João, aquele que fechou os olhos negros em Alvor, num pôr do Sol como só os há nas praias do Sul de Portugal, já com a pureza e a luminosidade das cores do céu do Mediterrâneo e da antiga África romana. O Canto do Cisne do Infante iria durar pouco tempo também. Apenas cerca de dez anos. Mas os dados tinham sido lançados e já nada poderia fazer voltar atrás a roda do destino, nem para ele, nem para ninguém. A sua própria mulher, a desditosa duquesa de Coimbra, que no dote lhe trouxera a hipotética Coroa de Aragão que um dia um filho seu iria cingir, reduziu-se também ao anonimato, refugiando-se em Santa Clara.
Amou-o, certamente, embora só o tivesse visto uma vez antes do casamento, se é que o viu, a esse enigmático Infante de Portugal. Deu-lhe vários filhos e viveu a seu lado vinte e um anos. Nem sempre a paixão é a única razão do amor, mas Isabel de Urgel soube manter-se-lhe fie até ao fim.

O Cálice e a Serpente
Contam os velhos que um dia, indo o Infante Henrique, durante a menoridade do infante Afonso, visitar o irmão Pedro a Coimbra, e achando-se perto da porta de S. Bento, mesmo sobre a ponte do Mondego, olhou as armas da cidade ,uma mulher sobre um cálice, coroada e com um seio amamentando um leão, enquanto o outro amamentava uma serpente. Na pedra escurecida pelo tempo o leão e a serpente pareciam observar-se quase acrimoniosamente, enquanto se amamentavam nos fartos seios da mulher. O infante Henrique, de costume sisudo e mal-encarado, no geral pensativo e de cenho franzido, como se pensasse sempre em qualquer outra coisa, dando a perfeita impressão de que não participava nunca com os outros do que acontecia à sua volta, sorriu e apontou o escudo d’armas ao irmão e exprimiu a sua opinião, o leão era Castela, a serpente o timbre das armas da dinastia fundada pelo pai... e ele, o I’nfante das Sete Partidas’, a figura que dá mantimento a Castela de um lado e a Portugal do outro... Pedro mirou as armas da cidade e não sorriu:
  • ‘Por baixo está um cálice, meu irmão, não reparastes?’ O cálice ou o cadez que pode conter o vinho e o sangue. O Graal, porque não? Mas a taça cruel e amarga do infortúnio também. E o Infante, numa daquelas premonições que tantas vezes o assaltavam, respondeu que, talvez, ao cabo de tantos trabalhos e sacrifícios, o cálice e o sangue acabassem por se tornar no seu verdadeiro e injusto galardão. E não se enganou.
A sua divisa, “Désir”, não o protegeu do mal. Antes pelo contrário, precipitou-o nele como se para que a Providência pudesse fazer brotar para a vida futura o seu grande sonho ibérico, ele tivesse de se apagar e morrer na sua crisálida ensanguentada nas margens de um ribeiro que se atravessava a vau, nesse mês de Junho triste, onde apenas os medíocres cantaram a glória vã dos pobres homens que julgam que podem comandar os ocultos desígnios do destino». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.


Cortesia de Editorial Presença/JDACT