terça-feira, 3 de julho de 2012

Cartas Portuguesas. Soror Mariana Alcoforado. «Não receie que eu lhe escreva; nem sequer porei o seu nome na encomenda. Encarreguei de tudo Dona Brites, a quem eu tinha acostumado a confidências bem diferentes desta. Os cuidados dela ser-me-ão menos suspeitos do que os meus»


Ilustração de José Ruy
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… só conheci bem o excesso do meu amor quando quis fazer todos os esforços para me curar dele.

Quinta carta
«Escrevo-lhe pela última vez, e espero fazer-lhe saber, pela diferença dos termos e do tom desta carta, que, finalmente, me persuadiu de que já não me amava e que, portanto, também eu devo deixar de o amar. Vou, pois, enviar-lhe, pelo primeiro portador, tudo o que ainda me resta de si.
Não receie que eu lhe escreva; nem sequer porei o seu nome na encomenda. Encarreguei de tudo Dona Brites, a quem eu tinha acostumado a confidências bem diferentes desta. Os cuidados dela ser-me-ão menos suspeitos do que os meus; ela tomará todas as precauções necessárias, a fim de que eu possa ficar certa de que recebeu o retrato e as pulseiras que me deu.
Quero, no entanto, que saiba que, de há alguns dias a esta parte, sinto vontade de queimar e de destruir estes testemunhos do seu amor que me eram tão caros; mas mostrei-me tão fraca para consigo que nunca acreditaria que eu pudesse ser capaz de tais extremos. Desejo, pois, gozar de toda a dor que tive ao separar-me deles e causar-lhe também a si algum despeito.
Confesso, para vergonha minha, e sua, que me achei muito mais presa a estas bagatelas do que quero confessar. E senti que me eram de novo necessárias todas as minhas reflexões para me desfazer de cada uma delas em particular, quando já me gabava de não estar presa a si. Mas a gente acaba sempre por conseguir o que deseja, sobretudo quando, para tal, há tantas razões como neste caso.
Pus tudo entre as mãos de Dona Brites.
As lágrimas que esta decisão me custou! Depois de mil indecisões e de mil incertezas que, decerto, nem imagina e que não lhe vou dar a conhecer, conjurei-a a nunca mais me falar dessas coisas, a nunca mais mas dar, mesmo que eu lhas pedisse para mais uma vez voltar a vê-las, e pedi-lhe que lhas enviasse sem nada me dizer.
Só conheci bem o excesso do meu amor quando quis fazer todos os esforços para me curar dele, e receio que não tivesse ousado aventurar-me a essa empresa se tivesse podido prever-lhe todas as dificuldades e violências. Estou convencida de que teria experimentado sensações menos desagradáveis amando-o, ingrato, embora, como é, do que deixando-o para sempre. Tive então a prova de que lhe quero menos do que à minha paixão, e suportei dores indescritíveis em a combater, depois que a infâmia da sua maneira de proceder o tornaram odioso aos meus olhos.
O orgulho típico do meu sexo não serviu de nada quando se tratou de tomar partido contra si. Ai de mim! Sofri os seus desprezos, e teria suportado o seu ódio e todo o ciúme que poderia nascer em mim de uma ligação sua com outra mulher qualquer, mas, pelo menos, teria urna paixão para combater. É a sua indiferença que não posso suportar». In Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, texto da primeira edição francesa de 1669, Europa América, 1974.

continua
Cortesia de P. Europa-América/José Ruy/ JDACT