quarta-feira, 13 de junho de 2012

Problematizar a Sociedade. A desconhecida sociedade em que vivemos, que caminhos para a compreendermos? «… nos diferentes níveis da personalidade, uma combinação, uma conexão recíproca e em transformação permanente entre individual e social. Em qualquer dos casos, temos um ponto de partida: a realidade objectiva das relações sociais»


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«Correntemente considerava-se que o indivíduo se afirma pela sua consciência, a sua personalidade consiste no conhecimento que de si próprio tem, em aperceber-se a si mesmo, a todas as suas reacções e ao conjunto da sua conduta. O individual seria, por conseguinte, o consciente. Um psicólogo formado na escola psicanalítica, o médico Charles Blondel, inverteu a interpretação: a consciência traduz muito mais uma realidade social e colectiva do que uma realidade individual. O estudo dos doentes mentais mostraria que o incomunicável, aquilo que é autenticamente individual, se situa no inconsciente e no subconsciente, nas profundezas do “eu”. Os estados patológicos caracterizam-se pela impossibilidade de comunicação com a sociedade; o alienado seria, segundo Blondel, essencialmente um isolado. Sendo assim, teríamos a identificação da consciência com o social e da inconsciência com o individual, com o profundamente subjectivo. Ideia fecunda, e que continua a merecer que a utilizemos nas nossas explorações.
O etnólogo Lévi-Strauss voltou esta ideia do avesso: o social, longe de ser o consciente, seria precisamente o inconsciente. Num sentido que não se confunde com a posição do médico psicólogo Jung, convicto proponente da ideia de inconsciente colectivo. Jung chamou a atenção para o conjunto de condutas e situações da personalidade que escapam à consciência e que, longe de traduzirem uma posição individual, são como que aluviões que se foram depositando através dos séculos; esse inconsciente seria imanente às diferentes pessoas que compõem a sociedade. Esta interpretação esbarra todavia com algumas dificuldades metodológicas, a principal sendo a da transmissão dos caracteres adquiridos. Esta transmissão é uma hipótese, aliás também necessária à teoria da evolução de Darwin, que não está descartada mas também não está provada, e diz respeito a caracteres biológicos, físico-químicos, e não a traços psíquicos. Parece extremamente difícil admitir que a evolução pretérita da humanidade foi depositando no espírito de cada um de nós camadas abaixo da consciência, para além do apercebermo-nos de nós próprios; as nossas condutas de hoje teriam inscritas realidades psíquicas do passado, mesmo de eras longínquas, por isso Jung lhes chamou “paleopsique”, quer dizer, psique primitiva ou arcaica, que teria sobrevivido mau grado as eras. Mas o problema é de extrema complexidade, porque não há dúvida de que encontramos nas sociedades do nosso tempo, ou pelo menos de há algum tempo atrás, na psicologia de diferentes grupos sociais, por exemplo na literatura popular, o que parecem ser sobrevivências de épocas passadas, condutas que se diria poderem remontar até ao paleolítico; seja como for, pertenceriam a épocas históricas, umas distantes, outras próximas.
Considere-se a posição de Jung ou a posição muito mais matizada de Lévi-Strauss, o que importa é reter que a existência social, não se confundindo com a consciência social, se estratifica em níveis de profundidade, que vão desde o consciente, através do subconsciente até ao inconsciente tanto individual como colectivo.


Não há, ao contrário do que pretendia Blondel, a dupla correspondência entre consciência e sociedade, inconsciente e individualidade, nem a dupla correspondência oposta, sociedade e inconsciente, pessoa e consciência, como defendeu Lévi-Strauss. Há, sim, nos diferentes níveis da personalidade, uma combinação, uma conexão recíproca e em transformação permanente entre individual e social. Em qualquer dos casos, temos um ponto de partida: a realidade objectiva das relações sociais. Conquanto imanentes às pessoas, transcendem-nas como algo que se lhes impõe, que não podem modificar a seu belo talante, e de que só têm uma consciência fragmentáría, frequentemente deformada. Mas se a sociedade é uma realidade autónoma, que ao indivíduo se contrapõe, não é evidentemente de natureza material, não o é no sentido da interpretação grosseira do conceito de” coisa” contra o qual reagiu Durkheim. Apresenta-se-nos como constelação de estruturas, entidade colectiva que transcende a soma das partes de que se compõe». In Vitorino Magalhães Godinho, Problematizar a Sociedade, Quetzal Editores, 2011, ISBN 978-972-564-946-6.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT