terça-feira, 5 de junho de 2012

O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910). Luiz Rebello. «Os seus continuadores, incapazes de elevar as suas obras a essa dimensão, confinaram-se aos limites de uma artificiosa reconstituição pseudo-histórica, assim trazendo (como diria Engels a propósito dos dramas históricos de Victor Hugo e Dumas) ‘às forças da reacção o apoio de um passado que resistia a desaparecer’»


Cortesia de wikipedia

O Legado Romântico
«Todos estes fenómenos, de que nos limitámos a descrever as manifestações essenciais, tiveram o seu reflexo necessário na arte e na literatura nacionais, e em especial no teatro, que regista, como um sismógrafo, as mais leves variações das estruturas sócio-económicas, sem que ao mesmo tempo deixe de reagir sobre elas.
Trata-se, como diria em 1889 o jovem crítico Moniz Barreto, de «uma espécie literária cujo carácter próprio é ressentir-se imediata e directamente das vicissitudes do estado social que a produz». Foi a revolução liberal de 1820 que abriu caminho ao romantismo nas letras portuguesas; e o mais autorizado porta-voz do movimento, Almeida Garrett, que em 1821 fizera representar uma tragédia em que as novas ideias se exprimiam ainda dentro do espartilho das regras clássicas (Catão), elaborou em 1836 um «plano para a fundação e a organização de um Teatro Nacional, o qual, sendo uma escola de bom gosto, contribuísse para a civilização e aperfeiçoamento da nação portuguesa».
Esse plano, de que o futuro autor do Frei Luís de Sousa (para quem o teatro era «uma questão de independência nacional») fora incumbido por uma portaria régia, assinada pelo ministro Passos Manuel, abarcava todos os níveis da criação teatral, desde a formação de actores e o estímulo aos autores através da fundação de um Conservatório Geral de Arte Dramática, destinado a preparar os primeiros e a premiar os segundos, à construção de um Teatro Nacional «em que decentemente se pudessem representar os dramas nacionais», tudo isto coordenado por uma Inspecção Geral dos Teatros e Espectáculos Nacionais, para cuja direcção ele próprio, Garrett, foi nomeado ainda em 1836. O Conservatório começou logo a funcionar, com elevada frequência de alunos, e em 1839 era aberto o primeiro concurso para a atribuição de prémios aos dramaturgos nacionais, considerado por Garrett como «o primeiro elo de uma cadeia de regeneração para a arte dramática em Portugal». Quatro dramas, todos eles de tema histórico, foram distinguidos pelo júri:
  • Os Dois Renegados, de Mendes Leal, 
  • O Cativo de Fez, de Silva Abranches, 
  • O Camões do Rocio, de Inácio Maria Feijó, 
  • Os Dois Campeões, de Pedro Sousa de Macedo.
O equívoco do drama histórico, que mais ou menos regularmente haveria de subsistir até ao fim do século, começou então. Debalde Herculano, em 1842, estigmatizava a «linguagem de cortiça e ouropel» utilizada pelos autores desses dramas, exortando-os a porem de preferência em cena «a vida presente, que também é sociedade e história»; em vão o próprio Garrett, criticando também «o destempero do drama plusquam romântico», a «dança macabra de assassínios, de adultérios e de incestos, tripudiada ao som das blasfémias e das maldições, como hoje se quer fazer o drama», apontava o caminho certo ao escrever, em 1843, o Frei Luís de Sousa, que unia a fatalidade do teatro antigo a uma dialéctica dos sentimentos especificamente romântica e projectava numa dimensão mítica uma realidade histórica nacional.
Os seus continuadores, incapazes de elevar as suas obras a essa dimensão, confinaram-se aos limites de uma artificiosa reconstituição pseudo-histórica, assim trazendo (como diria Engels a propósito dos dramas históricos de Victor Hugo e Dumas) «às forças da reacção o apoio de um passado que resistia a desaparecer».
A mesma opção estilística (e ideológica), agora aplicada ao que se apresentava como uma descrição dos «costumes contemporâneos», se exprime nos dramas e comédias ditos «de actualidade» que, em perfeita correspondência com a política dos «melhoramentos materiais», a partir de 1851 vieram substituir nos palcos portugueses os melodramas históricos, em grande parte, aliás, da autoria dos mesmos escritores. É certo que a acção destas peças não se localizava já no passado; os castelos e as masmorras medievais cederam o lugar aos salões burgueses, eventualmente às fábricas e oficinas; as personagens trocaram o gibão e a cota de malha pela sobrecasaca, pelo roupão doméstico, algumas vezes pela blusa de operário; em vez da linguagem arcaica, o diálogo procurava adaptar-se ao tom coloquial da conversação corrente. Mas, como diria, anos mais tarde, parafraseando Zola, o teórico português da estética naturalista, Júlio Lourenço Pinto, «o Carnaval da natureza» continuava.
Depois de ter sido o apóstolo fervoroso do drama histórico (leia-se, por exemplo, o altissonante prefácio que escreveu para a edição em livro de Os Dois Renegados), Mendes Leal antecipou-se à «nova escola» da dramaturgia francesa, representada pelos Dumas filho e os Augier, escrevendo à volta do meio-século os cinco actos de Pedro, através dos quais se propunha confessadamente «esboçar na vida coetânea um quadro em que vivesse a paixão como se não supunha ainda plausível». O drama, publicado em 1857, só em 1863 veio a ser representado no Teatro Nacional; mas a sua factura é anterior à estreia das grandes «comédias sérias» de Dumas (A Dama das Camélias, 1852; Demi-Monde,  1855; A Questão do Dinheiro, 1857) e Augier (O Genro do Sr. Poirier, 1854; As Elegantes Pobres, 1858). De «realismo» se falou, então, a propósito de Pedro e dos dramas de inspiração idêntica que se lhe seguiram: era, porém, ainda o legado romântico que eles exploravam, numa espécie de metamorfose apressada das teorias de Victor Hugo sobre a fusão contrastante do grotesco e do sublime, que combinava a observação dos costumes e a intenção moralizadora, próprias da comédia, com as situações patéticas e a expressão exaltada dos sentimentos, características do drama romântico». In Luiz Rebello, O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 16, Instituto de Cultura Portuguesa, Pdf, Livraria Bertrand, 1978, Centro Virtual Camões.

Cortesia da Biblioteca Breve/JDACT