domingo, 10 de junho de 2012

A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577). As suas Damas. Carolina Michaëlis. «De tal modo te dedicaste ao estudo que não só de passagem e pela rama, como é praxe entre damas, mas a fundo e de coração te entregaste ao convívio das Musas, [...] ao dedicar-lhe as obras de um sábio. Como eruditíssima foi apostrofada repetidas vezes por André de Resende e Inácio de Moraes»»



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NOTA: Texto na versão original

A Infanta D. Maria
«Já ouvimos as informações do embaixador castelhano Sancho de Cordova ao soberano. Este recorria continuamente ao seu preclaro juizo e à sua illustração. Vive em intimo convivio com as Musas, cunt Musis rationem stadiorum habet conjunctissimam, escrevia em 1546 sua preceptora particular, Luisa Sigea, fallando d'ella ao Papa Paulo III. Em outra occasião, a mesma designa-a como primaz em humanidades, erudição e virtudes. Com haver-se inclinado ás letras, as honra Vossa Alteza e a todos os seus professores, lhe dizia um ancião veneravel, o austero Navarro, Martim de Azpilcueta. Realmente distincta pelo engenho e força de espirito a proclamava Jeronymo Osorio, o grande Bispo de Silves: ingenio et animi magnitudine excelluit. Como eruditissima foi apostrophada repetidas vezes por André de Resende e Ignacio de Moraes. ‘De tal modo te dedicaste ao estudo que não só de passagem e pela rama, como é praxe entre damas, mas a fundo e de coração te entregaste ao convivio das Musas’, assim lhe fallava outro humanista notavel, da amizade de Cortereal, ao dedicar-lhe as obras de um sabio. Entre as eruditas do nosso tempo occupa logar honroso: é Vaseu, auctor da Chronica Hispanica quem o assenta e divulga “urbi et orbi”. Unica pela prudencia e conhecimento de todos os assumptos, “prudentia et omnium rerum cognitione tamquam fhenix única”. Sabedora de tudo!... Mas com este dicto, lá estamos novamente no campo das hyperboles, que tento evitar.
Fundando-me em taes e em outros elogios singelos e sinceros de varões e damas que a conheceram de perto, nas obras notaveis, scientificas e amenas, que lhe offereceram, e nas poucas amostras do seu estylo cuidado que perduram, julgo que pela leitura reiterada de trechos escolhidos de litteratura sacra e profana, antiga e moderna, em linguas mortas e vivas, adquiriu uma fina percepção da arte: respeito pelas letras; noções muito variadas; um peculio basto de historietas e dictos classicosi plena comprehensão da lingua latina a ponto de entender tanto os discursos recitados por oradores como as eglogas, comedias e tragedias, representadas nos collegios de Coimbra e Evora; facilidade sufficiente para responder de improviso a embaixadores ou legados, e para redigir cartas de agradecimento e congratulações a soberanos estrangeiros. Do grego, os rudimentos, afim de perceber a terminologia scientifica e a decifrar e verificar citações no Novo Testamento, ou allusões como as de Hollanda, na Iliada e Odysseia.
E francamente, não é pouco. Merecia applausos. Constituia caso inteiramente novo entre princesas nascidas em Portugal. Ainda assim, a interpretação de João de Barros comprehende-se e não carece de todo o fundamento. Portugal havia adoptado tão tarde a reforma da educação no sentido da Renascença que a reacção seguiu a acção muito de perto, antes de o saber classico haver filtrado das camadas superiores para as inferiores, espalhando sementes para colheita futura. Na propria vida da Infanta, mais ainda, no proprio reinado de João III e D. Catharina, a catastrophe estalou, e deu rumo diverso tanto ao ensino publico e particular, como ás leituras e praticas da Infanta. Naquelle sentido orthodoxamente catholico, bem se vê, que procreou a “austera, apagada à vil tristeza” que o Vergilio lusitano lamentava, e já, fôra apontado como caracteristico nefasto de todos os reinos governados por estultos e monges, “regnum monachorum et stultorum” pelo sabio de Rotterdam e pelo grande poeta comico português». 
In Carolina Michaelis de Vasconcelos, Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas, edição fac-similada, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1994, ISBN 972-565-198-7.

Cortesia de Biblioteca Nacional/JDACT