sábado, 9 de junho de 2012

Fernando Pessoa e os Mundos Esotéricos. José Manuel Anes. «Os evangelhos são somente dramatizações ou, em outras palavras, cristianizações, da tragédia de Lida. São rituais dramáticos, e os três primeiros evangelhos, os chamados sinópticos, são primeiras redacções, só no Quarto Evangelho está acabada a dramatização»



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Gnosticismo
«Como muito bem observa Dalila da Costa, ‘Tudo levará a crer que seria o desaparecimento actual da parte esotérica no catolicismo, uma das causas preponderantes que afastaria Fernando Pessoa da sua religião confessional’, motivando a ‘procura desta parte do seu conhecimento secreto e reservado’, noutras formas de espiritualidade características do ‘esoterismo cristão’, ou do gnosticismo cristão, ou hermetismo cristão da ‘Ordem do Templo’ e da ‘Fraternidade dos Rosa-Cruz’. É claro que a “gnose cristã”, melhor o “gnosticismo cristão” (para não o confundir com as doutrinas de um Clemente de Alexandria, de um Orígenes ou de Ireneu de Lyon, mas próximas da norma triunfante), tem, do Cristo, uma perspectiva muito diferenciada, relativamente ao Cristianismo das grandes Igrejas e denominações (Catolicismo, Ortodoxia, diversas correntes protestantes, etc.). É verdade que Fernando Pessoa recebeu da teosofia (via “A Doutrina Secreta” de Blavatsky) a noção de que a personagem de Cristo foi construída em cima de um guerrilheiro judaico em revolta contra o opressor que foi preso e condenado e crucificado um século antes da nossa era, na localidade de Lida, entre Jerusalém e Jafa. Como Pessoa escreve na obra “Subsolo”:
  • ‘Os evangelhos são somente dramatizações ou, em outras palavras, cristianizações, da tragédia de Lida. São rituais dramáticos, e os três primeiros evangelhos, os chamados sinópticos, são primeiras redacções, só no Quarto Evangelho está acabada a dramatização, e postos os selos mágicos. Por isso, para o Católico verdadeiro, são dipensáveis os outros evangelhos’. E mais adiante: ‘Dada a tragédia de Lida, os Demiurgos ergueram o Mártir em Verbo’.
Fernando Pessoa dá exemplo desta transposição do homem-mártir para o Deus-mártir no seguinte trecho do “Átrio” que embora longo, decidimos transcrever devido à sua importância, o qual ele intitula “Ordens do Átrio”, do “Claustro e do Templo: seus mistérios, iniciações e rituais”. Suponhamos que os Mestres ou Sacerdotes de uma Ordem do Templo, de posse, como tais, de uma verdade divina, e suponhamos que essa verdade é a do Verbo incarnado e sacrificado para a redenção do Mundo. Suponhamos, ainda, que esses sacerdotes, de posse dessa verdade real e não simbólica, vivem num mundo pagão, crente nos deuses múltiplos da religião grega ou romana. Suponhamos, mais, que esses mestres da doutrina secreta querem comunicar aos que o mereçam, por provarem que merecem, a doutrina secreta de que são senhores. Formarão para isso Mistérios, ou Iniciações. E, na formação do ritual desses Mistérios, procederão da seguinte maneira. Buscarão, primeiro, entre os deuses pagãos qual é aquele cuja história possa conformar-se, como a sombra ao corpo que a projecta, à vida e à morte do Verbo. Encontrarão, por exemplo, Baco, em cuja história divina há analogias evidentes com a do Verbo incarnado, ainda que em nível diferente, que é o que é preciso. Redigirão uma fórmula em que, eliminando os acidentes que perturbem a semelhança, consigam dar, na história de Baco, por símbolo e analogia, a história do Verbo. E esta fórmula, uma vez encontrada, chamar-se-á a Fórmula do Transepto. Nela está obtido o segredo supremo da Ordem ou Mistério a criar, mas o verdadeiro segredo está guardado por eles, altos iniciadores, pois o que vão transmitir como verdade suprema nesse mundo pagão e ainda uma sombra da verdade.
Feito isto, prosseguem. E buscam então uma figura, real ou mítica, para quem possam transpor os incidentes, não já da vida e da morte do Verbo, mas da vida e da morte de Baco. Qualquer figura servirá, desde que nela não haja baixeza, e o que com ela se passa possa atrair de uma maneira indirecta; e será preferível uma figura, ou inteiramente mítica, ou de quem tão pouco conste na história, que tudo que se queira se lhe possa sem risco ser atribuí do. Para essa figura transpõem os pormenores da vida e da morte de Baco, em maneira translata, isto é, a figura não pode ser de um Deus, nem de qualquer modo revelar que oculta a de Baco. Haverá mais íntimo afastamento entre esta figura e a de Baco, que entre a de Baco e a do Verbo. Obtida esta figura, faz-se a equivalência da sua vida e morte, com a vida e a morte de Baco; “e é em torno desta figura, duplamente simbólica, que se escreve o ritual”. Assim, todo o ritual é o símbolo de um símbolo, a sombra de uma sombra. E é a esse ritual, que por iniciação se comunica aos candidatos, que se chama a Fórmula do Limiar”.
Para bom entendedor...
Em síntese, acrescenta Pessoa: ‘O Cristo (...) não existe senão simbolicamente; é substancialmente simbólico. Cristo (..) é um mito na sua própria realidade; é real na proporção em que é mítico. É só símbolo, mas só símbolo de si-próprio...’. Isto conduz a uma concepção cósmica de Cristo, mais ampla, que integra e completa não só os deuses e os mistérios das antigas religiões, mas também a concepção “humanizada” de Cristo».  
In José Manuel Anes, Fernando Pessoa e os Mundos Esotéricos, Ésquilo 2008, ISBN 978-989-8092-27-4.