quinta-feira, 7 de junho de 2012

Antero ou a Noite Intacta. Eduardo Lourenço. «Todavia, no sentido imediato da palavra, não se pode dizer que ele tenha sido um “mártir” do Socialismo. Quando muito foi-o da ideia do Socialismo como revolução social, moral e de consciência. Mas era esse, talvez, o autêntico martírio»


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Antero ou o socialismo como utopia
«Os homens de alta exigência ética e mística, e Antero foi um deles, são sempre um pouco arcaicos. Nada espanta que as suas relações humanas com os seus camaradas militantes se tenham ressentido dessa espécie de ‘rigidez’ íntima, onde, sem dúvida, além de um traço de carácter, se reflectiria também a sua condição social. A contradição, se merece tal nome, não incide sobre o ideal do Socialismo, nem, a bem dizer, sobre o nível de consciência com que podia ser compreendido e traduzido em actos pelos seus camaradas proletários ou de meios modestos. Se existe, incide sobre a essência mesma da sua visão da Realidade, sobre a sua filosofia.
A maneira como Antero exemplificou essa contradição é, específica, tanto pela inserção social e o estilo de vida do autor dos “Sonetos” como pelo radicalismo dessa filosofia, impregnada de pessimismo, a partir de dada altura do seu percurso. Deve acrescentar-se que, durante os dois decénios em que ele tentou ligar o seu destino ao do movimento operário nascente, havia na realidade social e intelectual portuguesa mais do que era preciso para alimentar a inclinação profunda de Antero para o pessimismo. O abismo era quase intransponível entre o mundo social ao qual Antero pertencia pelas suas origens, tradições e educação e o mundo operário apenas saído da sua ganga rural. O único elo efectivo e afectivo entre ambos, o da religião, ou pelo menos da prática dita religiosa, quebrara-se abstracta, mas fundamente, no espírito de Antero. Com o tempo, Antero converteu-se no sujeito de um processo de automarginalização, de um suicídio vivido de olhos abertos, antecipando sobre o gesto final. Era o preço que devia pagar, sem dúvida, um aristocrata provincial, mentalmente em situação de ruptura com os valores não só da sua classe de origem como da quase totalidade da classe letrada, e intelectualmente dotado dos dons especulativos mais raros, para poder converter-se no “irmão” dos pioneiros efectivos, bem pouco numerosos, do militantismo português, de carácter revolucionário no nosso século XIX.
Diz-se que a frequentação desse meio militante lhe provocava um certo mal-estar. Se é exacto, esse “mal-estar”, bem compreendido, só o honra. Jovem, Antero fora impulsivo e, por vezes, demagogo. O homem adulto, instruído pela vida e pelo sofrimento, não podia enganar-se a si mesmo. A sua diferença não era o fruto ocasional da sua condição de cultura e de classe. O conteúdo autêntico da sua dolorosa ‘diferença’ consistia no sentimento de “solidão ontológica e moral” que Antero experimentava no mesmo, ou, em maior grau, no meio da alta roda dos seus amigos, no tempo em que a frequentava. Para esse clã, privilegiado da fortuna, da posição ou da inteligência, Antero era ao mesmo tempo ‘o santo’, o ‘sábio’ e a insuportável má consciência. É evidente que às contradições históricas do sonho socialista dos anos 80 e aos seus obstáculos normais Antero acrescentou as suas próprias e irredutíveis contradições pessoais. Mas, ao contrário de outros, assumiu-as intelectual e vitalmente até morrer delas, nelas e por causa delas. A posteridade reteve sobretudo o seu sofrimento espiritual e orgânico, assim como o fim trágico a que um e outro conduziram, um pouco como uma desculpa ou um remorso tardio. Antero escapava, nessa perspectiva, ao seu destino de ‘suicidado da sociedade’ mais conforme com uma leitura adequada dele. Todavia, no sentido imediato da palavra, não se pode dizer que ele tenha sido um “mártir” do Socialismo. Quando muito foi-o da ideia do Socialismo como revolução social, moral e de consciência. Mas era esse, talvez, o autêntico martírio.

Em Portugal, na sua época, de aparente (mas também realíssima) liberdade de expressão, à maneira europeia, um intelectual da sua condição e do seu génio estava condenado à “consideração” mítica ou distraída. Realidade objectivamente “utópica”, o projecto socialista, entre nós, não podia adquirir os seus pergaminhos de nobreza senão encarnado e vivido intelectualmente por um homem capaz de lhe insuflar todo o peso do dilaceramento abrupto que ele significava em relação a toda a nossa tradição política, moral e religiosa. Desse dilaceramento, o coração, a alma e o espírito de Antero eram justamente o lugar supremo. Antero quis beber o vinho novo da Revolução na antiga taça de uma Fé que todo o seu século,  e ele mesmo, ajudara a quebrar. Ou, inversamente, acreditou que a antiga aspiração encontrava o seu cumprimento nos combates novos sob a bandeira da justiça social. Alma de apóstolo mais que génio revolucionário, pôde comunicar, contudo, aos maiores espíritos do seu tempo, a um Eça de Queirós, a um Oliveira Martins, a paixão que nenhuma ironia, nenhuma fraqueza mundana puderam de todo apagar.


Fracasso da utopia? Em termos de destino vital, talvez. Antero sucumbiu ao poder das trevas, mas o sonho da sua adolescência, nunca renegado, sublevou uma geração de artistas e revolucionários da sensibilidade que ainda hoje nos acenam e nos iluminam. Um só exemplo fala por ela: Juliana. A mais fascinante das personagens de Eça de Queirós, plantada na berma e no centro do mundo inconsciente da burguesia do nosso século XIX como o arquétipo de uma classe humilhada incapaz de levar a sua revolta mais além que a consciência imediata, só podia nascer à sombra de um desses mediadores da revolta em “espírito”, esses cruzados da utopia que são os intelectuais dignos desse nome.
E quem, em Portugal, o foi, mais que Antero?»
In Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007, ISBN 978-989-616-181-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT