terça-feira, 8 de maio de 2012

A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho. Carolina Michaelis de Vasconcelos. «Mais uma vez com as mãos na enorme massa lírica peninsular, que já tantas vezes tenho revolvido, aproveitei o ensejo para, individualmente, acabar com aquelas parcelas da matéria, até agora acumuladas, que dizem respeito à “Saudade” antiga»



jdact e cortesia da costapinheiro

«Mas de modo algum podia pertencer a esse período, a “volta” portuguesa em forma de “vilancete”que Luiz Vélez de Guevara intercalou em “Reinar despues de rnorir”, e na qual ele é parafraseado. A Volta castelhana essa é (salvo erro) obra, fraca, do próprio Guevara.
A portuguesa, já o disse, saiu das “Rimas” de Luís de Camões. Por ora direi apenas que tal hibridez, a junção de uma volta castelhana a outra portuguesa, é desusada, sem ser única.
Vou lembrar mais um caso; parecido, não igual. Caso duplamente importante, visto que é indício de peso, (se não for prova) das origens portuguesas de uma obra de fama universal, hoje existente só em redacção castelhana. E é de mais a mais, a quase única amostra de versos do 1º período da lírica portuguesa que passaram ao 2º, luso-castelhano.
A obra de fama universal a que me refiro é o “Amadis”. A canção intercalada é a que tem:

Leonoreta
Fin’ roseta
bela sobre toda fror,
fin’ roseta
non me meta
en tal coita voss’amor.

Escrita pelo trovador “João Lobeira” conserva-se no “Cancioneiro Colocci-Brancuti”. O processo adoptado pelo redactor castelhano foi o de traduzir (mal) duas estrofes do original, e de acrescentar outra, de tipo diverso (uma “décima do século XV”), em substituição da terceira, portuguesa, que não se prestava a ser fácil e literalmente castelhanizada.

De há muito eu conhecia o dístico velho e popular que dá ao ‘bem’ ausente o nome carinhoso, triste e doce de ”Saudade minha”, expressando em seguida todos os dissabores da ausência na breve pergunta “Quando te veria?”, muito singelo, mas ainda assim quintessência, alfa e ómega, de todos os suspiros nostálgicos. Conhecia também algumas paráfrases dele, e o verdadeiro autor da Volta portuguesa, escolhida por Guevara, para caracterizar o amor de Inês.
Por isso pude, sem tardar, transmitir ao sr. Ocerin um punhado de apontamentos, éditos, e inéditos. Em forma concisa, bem se vê. Suficiente para o aparato crítico do drama espanhol. Insuficiente todavia para Portugal, onde de um tempo para cá poetas e filósofos se ocupam com fervor da psicologia da alma nacional, e do sentimento doce-amargo que lhes parece ser o traço mais característico da apaixonada ternura portuguesa.
Mais uma vez com as mãos na enorme massa lírica peninsular, que já tantas vezes tenho revolvido, aproveitei o ensejo para, individualmente, acabar com aquelas parcelas da matéria, até agora acumuladas, que dizem respeito à “Saudade” antiga.
De propósito talhei este artigo de sorte que a sua essência possa entrar de futuro, em qualquer de três estudos maiores em que, vagarosamente, vou trabalhando: quer seja no intitulado “Portugal na literatura castelhana”, quer no “Cancioneiro Peninsular dos tempos antigos” que está bastante adiantado, quer num tratadito sobre a “Saudade”, que me fôra pedido pelo incansável director da “Revue Hispanique” para acompanhar aquela hoje já célebre “Carta do Conde de Portalegre sobre os mistérios da Saudade”, que nos prova que, cá e lá, já em fins do século XVI, a “Saudade” era considerada quase como filosofia ou religião nacional. Na ocasião não cheguei a redigi-lo, por não estar preparada a acompanhá-lo com uma selecta do que em prosa e verso estava escrito a respeito dela.

Em tal colecção ou selecta do muito que se tem dito acerca do ‘amargo gosto de infelizes, delicioso pungir de acerbo espinho’, há evidentemente demasias. É inexacta a ideia que outras nações desconheçam esse sentimento. Ilusória é a afirmação, que mesmo o vocábulo “Saudade, mavioso nome que tão meigo soa nos lusitanos lábios”, não seja sabido dos bárbaros estrangeiros, ‘estrangeiro e bárbaro’ são sinónimos, não tenha equivalente em língua alguma do globo terráqueo e distinga unicamente a faixa atlântica, faltando mesmo na Galiza de além-Minho». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho, “Saudade minha – quanto te veria?”, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.


 Cortesia de Guimarães Editores/JDACT