quinta-feira, 17 de maio de 2012

Diálogo do Frango e da Franga. Voltaire. «… encarceram-nos durante alguns dias, fazem-nos engolir uma farelada de que têm o segredo, rebentam-nos os olhos para que não nos possamos distrair; por fim, chegado o dia da festa, arrancam-nos as penas, cortam-nos a goela e assam-nos. Somos levados diante deles numa ampla travessa de prata; cada um comenta de nós aquilo que pensa»



(1694-1778)
Paris
Cortesia de cafehistoria

«O Frango: Oh, meu Deus, minha galinha, estás tão triste; que tens?
A Franga: Meu caro amigo, pergunta-me, antes, pelo que não tenho. Uma maldita criada tomou-me entre os joelhos, mergulhou-me uma longa agulha no cu, agarrou a minha matriz, enrolou-a à volta da agulha, arrancou-a e deu-a de comer ao gato. E eis-me incapaz de receber os favores do cantor lírico do dia e de pôr ovos.
O Frango: Ai!, minha querida, eu perdi mais do que tu; fizeram-me uma operação duplamente cruel: nem tu nem eu voltaremos a ter consolação neste mundo; fizeram-vos franga e a mim frango. A única ideia que serenou o meu estado deplorável foi a que ouvi, há alguns dias, junto à minha capoeira, debatida entre dois abades italianos a quem tinha sido perpetrado o mesmo ultraje para que pudessem cantar diante do papa com uma voz mais cristalina. Diziam que os homens haviam começado por circuncidar os seus semelhantes e que tinham acabado por os castrar: amaldiçoavam o destino e o género humano.
A Franga; Como? É, então, para que tenhamos uma voz mais clara que somos privados da mais bela parte de nós?
O Frango: Infelizmente, minha pobre franga, é para nos engordar e tornar mais delicada a nossa carne.
A Franga: Pois bem! Quando estivermos gordos, ficá-lo-ão eles ainda mais?
O Frango: Sim, porque pretendem comer-nos.
A Franga; Comer-nos! Ah, os monstros!
O Frango: É o seu costume; encarceram-nos durante alguns dias, fazem-nos engolir uma farelada de que têm o segredo, rebentam-nos os olhos para que não nos possamos distrair; por fim, chegado o dia da festa, arrancam-nos as penas, cortam-nos a goela e assam-nos. Somos levados diante deles numa ampla travessa de prata; cada um comenta de nós aquilo que pensa: um diz que sabemos a avelã, outro gaba a nossa suculenta carne; exaltam as nossas coxas, os nossos braços, a nossa rabadilha. Faz-se uma oração fúnebre e aí está a nossa história neste baixo mundo dada por terminada para sempre.
A Franga: Que horrendos patifes! Estou prestes a desfalecer. Como? Furarem-me os olhos! Cortarem-me o pescoço! Assarem-me e comerem-me! Esses celerados não têm um pingo de remorsos?
O Frango: Não, minha amiga; os dois abades de que te falei diziam que os homens nunca têm remorsos das coisas que têm o hábito de fazer.
A Franga: A detestável corja! Aposto que quando nos devoram ainda se põem a rir e a contar ditos anedóticos, como se nada fosse.
O Frango: Adivinhaste; mas fica a saber, se te serve de consolação, que essas bestas, bípedes como nós, e que estão verdadeiramente abaixo de nós visto que não têm penas, fizeram muito frequentemente o mesmo com os seus semelhantes. Ouvi dizer aos meus dois abades que nenhum imperador cristão ou grego se coibiu de furar os dois olhos aos primos e aos irmãos; que, mesmo no país em que vivemos, um houve, chamado Débonnaire, que fez arrancar os olhos ao seu sobrinho Bernard. Mas quanto a assar os da sua espécie, nada foi mais comum entre os homens. Os dois abades diziam que mais de vinte mil tinham sido assados por alimentarem certas opiniões, que seriam difíceis de explicar para um frango e que não importam por aí além.
A Franga: Seria, aparentemente, para os comer que os assavam.
O Frango: Não ouso assegurá-lo, mas lembro-me bem de ter ouvido claramente que há muitos países, entre os quais o dos judeus, onde os homens são algumas vezes comidos uns pelos outros.
A Franga: É adequado a uma espécie tão perversa que se devore a si mesma e seria justo que a terra fosse purgada desta raça. Mas eu que sou pacífica, eu que nunca fiz mal, eu que dei mesmo de comer a esses monstros ao dar-lhes os meus ovos, serei mutilada, cegada, degolada e assada! Tratam-nos assim no resto do mundo?
O Frango: Os dois abades dizem que não. Sustentam que num país chamado Índia, muito maior, mais belo, mais fértil do que o nosso, os homens têm uma lei santa que desde há milhares de séculos proíbe que nos comam; contavam que houve, inclusive, um homem, “Pitágoras” de nome, que, tendo viajado nesse país de gente tão justa, trouxera para a Europa essa lei humana, então seguida pelos seus discípulos. Aqueles bons curas liam Porfirio, o “Pítagórico”, que escreveu um interessante livro contra os espetos. Oh!, que grande homem! O divino homem que foi Porfirio! Com que sabedoria, com que força, com que respeito afectuoso pela Divindade, provou que somos os aliados e os pais dos homens; que Deus nos deu os mesmos órgãos, os mesmos sentimentos, a mesma memória, o mesmo germe desconhecido do entendimento, que se desenvolve em nós até ao ponto determinado pelas leis eternas e sem o qual nem os homens nem nós podemos alguma vez viver! Com efeito, minha querida franga, não será uma afronta à Divindade dizer que temos sentidos para nada sentir e cérebro para nada pensar? Esta imaginação digna, segundo diziam os abades, de um louco chamado Descartes, não será o cúmulo do ridículo e o vão pretexto da barbárie? Mesmo os maiores filósofos da Antiguidade nunca nos penduravam nos espetos. Empenhavam-se a aprender a nossa linguagem e a descobrir as nossas propriedades tão superiores às da espécie humana. Estávamos em segurança com eles como na idade de ouro. Os sábios não matam os animais, disse Pitágoras; somente os bárbaros e os padres os matam e comem. Este filósofo escreveu aquele admirável livro para converter um dos seus discípulos, que se tinha feito cristão por gulodice». In Voltaire, Diálogos do Frango e da Franga, Arbor Littera, 2010, ISBN 978-989-8292-39-1.

Cortesia de Arbor Littera/JDACT