sexta-feira, 25 de maio de 2012

Crónica Esquecida d’el rei João II. Seomara Veiga Ferreira. Leituras. «E onde estão eles? Mortos, todos nos seus túmulos de pedra lavrada, ou entre o tojo, a lama, o pó e as ervas do esquecimento... E eu onde estarei depois? Quando vi o túmulo de Pedro, que a piedade do povo e da filha conseguiu trazer da campa rasa repleta de vermes de Abrantes para Santo Elói e, depois, para a capela do Mosteiro da Batalha…»



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Désir ou o Canto do Cisne
«No dia 10 de Setembro o calor apertava e Tomar tem conhecimento de que El Rei Duarte morrerá de peste, tal como sua mãe há vinte e três anos se finara em Odivelas, antes da partida do marido e dos filhos para Ceuta. Pedro assiste a tudo, inicia os preparativos, esquece (ou finge esquecer) desavenças, apoia os sobrinhos e a viúva cunhada que sempre nutriu por ele uma manifesta antipatia, mesmo um mal dissimulado ódio, e pede a mestre Guedelha o horóscopo do sobrinho. Foi favorável e valeu ao bom judeu uma tença anual para juntar ao seu rendimento de físico real. Afonso, que é menor, é aclamado nas Cortes reunidas para esse efeito e o pequeno irmão Fernando é jurado também defensor do Reino. Mas logo em Novembro do mesmo ano, em Torres Novas, inicia-se a disputa pela regência do Reino durante a menoridade do Rei. Duarte, no seu testamento, propusera sua mulher, Leonor de Transtâmara, sua testamenteira, curadora dos filhos órfãos e Regente do Reino. Isto em desprimor dos irmãos, todos eles, talvez com excepção do jovem Fernando então já enterrado vivo no Norte de África, homens expelentes e virtuosos, capazes de levar a bom termo a regência do Reino. A Rainha, apesar da má vontade contra Pedro, cumpre a vontade do marido várias vezes expressa de casar o filho herdeiro com Isabel, filha do Infante. Radiante, Pedro aceitou mas em breve, por oposição do irmão bastardo, Afonso de Barcelos, os problemas surgem e avolumam-se. Afonso era um político nato e não podia aceitar as ambições políticas de mais ninguém, e muito menos do inteligente e arguto irmão Pedro, cujo destino se norteava há muito por um esquema de poder que abarcava parte da Península em relevante oposição às pretensões castelhanas e aragonesas. Além disso, Afonso, então já velho, queria casar a sua neta com o herdeiro do trono. Seria a forma de lavar todas as afrontas engolidas durante uma vida de ódios escondidos e ambições rasgadas pela má estrela que o perseguira desde o nascimento em Veiros? No jogo que se apresentava no tabuleiro do mundo, entre Barcelos e Lisboa, decidia-se mais que o seu desejo de alcançar o poder, nem que fosse através da neta, a jovenzinha filha do Infante João que casara com sua sobrinha Isabel, filha dos condes de Barcelos. Jogava-se o problema de Portugal com a Coroa de Aragão, com Navarra e a Catalunha. Jogavam-se os sonhos do filho segundo do Rei João I, os de Jaime de Urgel, pai de sua mulher, a hipótese de uma futura união ibérica e a própria vida do Infante duque de Coimbra, de todos os seus filhos e, porque Deus não dorme, os dos próprios duques de Bragança, já que será ainda durante a regência de Pedro que em título é conferido, em nome do jovem Rei Afonso, em Maio de 1442, ao conde de Barcelos...
As solenes exéquias de Duarte I são consumadas no Mosteiro da Batalha onde não esteve presente seu irmão João, gravemente doente em Alcochete, pelo que a mulher lhe escondeu a verdade sobre o passamento do Rei. D. Leonor confirmara, apesar da oposição do Barcelos, o casamento do filho com a primita. Pedro conhece, com a sua polícia bem montada, todos os seus opositores. Sabe que, em Lisboa, liderados pelo próprio arcebispo, cunhado do Barcelos, os seus opositores manobram contra a possibilidade da sua regência ou, pelo menos, da sua actuação política durante a menoridade do Rei.
Em Torres, Afonso convence, nas Cortes, Vasco Fernandes Coutinho, que será o primeiro conde de Marialva, a coordenar as opiniões dos fidalgos presentes contra o meio-irmão. Convém, a todo o custo, afastá-lo, afastá-lo... É primordial para o velho abutre de Barcelos neutralizar Pedro. Não é ele o genro daquele Jaime de Urgel a quem a própria mãe gritava, quase possessa, para lhe conferir força e firmeza:

Fill, ó rey o no res!
Filho! Ó Rei, ou nada!

Afonso, que abominava as pretensões do irmão, ambicionava o mesmo, mas, penso, nunca o confessou a não ser a ele próprio porque não o poderia jamais fazer. Isso seria traição, crime de lesa-majestade e ele não esqueceu nunca que era apenas um bastardo e sem hipóteses nenhumas no seu horizonte político.
Nada me opõe a Afonso, filho mais velho e espúrio do bom Rei João. Nada me opõe neste momento a ninguém. Não quero ser o leão da vingança, o servidor do Estado, o cronista oficial. Não sou o Pina, de quem, aliás, sempre gostei, mas conheci-o muito bem. É sempre difícil ser imparcial. Eu, aqui, neste barco que cheira ainda a fezes e vomitado dos emigrantes, dos viajantes fugitivos de toda a parte e daqueles que, daqui a dias, de Veneza partirão numa qualquer contarina para a Terra Santa, apenas escrevo o que vi e ouvi, o que me pareceu ser a verdade. Recordo-me sempre de um belo e velho poema que o mestre Tadeu me recitava…
Aliás, quem lhe ensinara o velho poema, que terá uns três séculos, mas é tão actual como o meu rosto já envelhecido, foi frei Jerónimo...
Onde está hoje a tua glória, oh Babilónia? Onde está o terrível Nabucodonosor, o forte Dario e o famoso Ciro? E onde estão eles? Mortos, todos nos seus túmulos de pedra lavrada, ou entre o tojo, a lama, o pó e as ervas do esquecimento... E eu onde estarei depois? Quando vi o túmulo de Pedro, que a piedade do povo e da filha conseguiu trazer da campa rasa repleta de vermes de Abrantes para Santo Elói e, depois, para a capela do Mosteiro da Batalha, que seu pai edificou, fiquei hirto em constrangido silêncio. Também outros túmulos me fizeram estremecer, mas o de Pedro mais, porque o lamentei profundamente. Acho mesmo que ele foi morto quando já não pretendia coisa nenhuma, e essa foi a maior partida do destino porque ele o que pretendeu efectivamente foi o trono de Aragão, o de Navarra, a herança de Jaime de Urgel e, para isso, casara-se com a filha mais velha do pretendente a Aragão, por procuração. Duarte com a filha de Fernando de Transtâmara, velho inimigo de Jaime condenado a prisão perpétua». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT