domingo, 20 de maio de 2012

Cartas Portuguesas. Soror Mariana Alcoforado. «Que fiz eu para ser tão desgraçada? Porque envenenaste a minha vida? Porque não nasci eu noutro País? Adeus! Perdoa-me! Já não ouso pedir-te que me ames: vê a que estado me reduziu o meu destino! Adeus!»


Ilustração de José Ruy
jdact

… uma paixão como nunca houve mais nobre, mais grave, nem mais ardente.

Conclusão da Quarta Carta
«No entanto, talvez eu me iluda, e talvez tu sejas mais tocado pelo rigor e pela severidade de outra qualquer do que o foste pelos meus favores. Será possível que te deixes apaixonar por via dos maus tratos? Mas, antes de te deixares dominar por uma grande paixão, pensa bem no excesso das minhas dores, na incerteza dos meus projectos, na diversidade dos meus arroubos, na extravagância das minhas cartas, nas minhas confianças, nos meus desesperos, nos meus desejos e no meu ciúme! Olha que vais ser um desgraçado! Conjuro-te a que aproveites alguma coisa do estado em que me encontro e que ao menos o que sofro por ti te seja de alguma utilidade!
Há cinco ou seis meses, fizeste-me uma confidência desagradável; e confessaste-me, com toda a simplicidade, que tinhas amado uma dama no teu país. Se é ela que te impede de voltar, dize-mo sem contemplações, a fim de que eu não sofra mais. Um resto de esperança me sustenta ainda. Mas, se ela não há-de ter qualquer sequência, então preferiria perdê-la de todo e perder-me com ela.
Manda-me o seu retrato com algumas das suas cartas e escreve-me tudo o que ela te diz! Talvez encontre aí razões para me consolar, ou para me afligir ainda mais. Não posso continuar por mais tempo no estado em que me encontro, e toda a mudança que houver só poderá ser-me favorável.
Gostaria também de ter o retrato do teu irmão e da tua cunhada. Tudo o que representa para ti alguma coisa me é muito querido e sou inteiramente devotada a tudo o que te diz respeito: nada conservei para mim! Há momentos em que me parece que até seria capaz de me sujeitar a servir aquela que tu amas!
Os maus tratos que me infliges e o desprezo que me votas abateram-me de tal maneira, que, às vezes, nem sequer ouso pensar que poderia ter ciúmes de ti sem cair no teu desagrado, e julgo fazer o pior mal do mundo quando te censuro. Muitas vezes, até me convenço de que não devo manifestar-te com tanta intensidade, como o faço, sentimentos que tu condenas.

Ilustração de José Ruy
jdact

Há muito tempo que um oficial espera por esta tua carta. Tinha resolvido escrevê-la de maneira a não te desgostar quando a recebesses. Mas acabou por ser demasiado extravagante, e é preciso acabá-la. Ai de mim! Não está nas minhas mãos resolver-me a tal! Parece-me que te estou a falar quando te escrevo e que tu me estás um pouco mais presente. A próxima não será tão longa nem tão importuna: poderás abri-la e lê-la com essa certeza. Na verdade, não te devo falar duma paixão que te desagrada, e prometo não te falar mais dela. Dentro de poucos dias, vai fazer um ano que me abandonei totalmente a ti, sem quaisquer reservas. A tua paixão parecia-me bem ardente e sincera, e nunca pensei que os meus favores te tivessem desagradado ao ponto de te levar a fazer quinhentas léguas e a expor-te a naufrágios para deles te afastares. De ninguém poderias esperar um tratamento assim!
Bem podes lembrar-te do meu pudor, da minha confusão e do meu enleio, mas não te lembres do que poderia obrigar-te a amar-me contra a tua vontade.
O oficial que te há-de levar esta carta manda-me dizer, pela quarta vez, que quer partir. Que apressado está! Decerto vai abandonar nesta terra alguma desgraçada!
Adeus! Tenho eu mais dificuldade em terminar a carta do que tu tiveste em me deixar, talvez para sempre.
Adeus! 1Vão ouso dar te mil nomes ternos, nem abandonar-me livremente a todos os meus arrebatamentos. Amo-te mil vezes mais do que à minha vida, e mil vezes mais do que eu penso! Como me és querido!... e como és cruel para mim! Tu não me escreves! Não consegui impedir-me de te dizer ainda isto! Vou recomeçar, e o oficial partirá. Que importa que ele parta? Eu escrevo mais para mim do que para ti, e aquilo que procuro é consolar-me. Por isso vais-te assustar com a extensão da minha carta e nem a chegarás a ler…
Que fiz eu para ser tão desgraçada? Porque envenenaste a minha vida? Porque não nasci eu noutro País? Adeus! Perdoa-me! Já não ouso pedir-te que me ames: vê a que estado me reduziu o meu destino! Adeus!». In Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, texto da primeira edição francesa de 1669, Europa América, 1974.

Ilustração de José Ruy
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Cortesia de P. Europa-América/José Ruy/ JDACT