quinta-feira, 17 de maio de 2012

As Saias de Elvira e Outros Ensaios. Eduardo Lourenço. «Mesmo o “Crime do Padre Amaro” é uma, ou assim se vive. Claro que Amaro e Amélia não são irmãos nem primos, mas simbolicamente são a configuração humana mítica por excelência da nossa cultura: “Adão e Eva”»



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«A cena erótica exige outra sublimidade. Começa a pedir exame, observação, como se fosse um capítulo da fisiologia, e sê-1o-á com Rémy de Gourmont. Eça instala-se nesse campo desertado pela ilusão lírica ou épica, as de Camilo ou Hugo, e confronta-se com Eros, menos como enigma do que como tentação, mesmo se o enigma permanece e acaba por manifestar, ao menos, uma das suas faces. Ou, em todo o caso, o seu acicate, a mesma Morte.
Não foi apenas esta nova percepção do lugar de Eros, do seu triunfo, agora universal na sua liberdade, que converteram Eça no ficcionista ímpar do Eros moderno. Foi a prodigiosa semantização de todos os conteúdos da vida como afectados pela presença omnipresente da pulsão erótica. E, sobretudo, a perspicácia, a força, a minúcia, o fascínio, até à obsessão, com que “dá a ver” o que por tão sabido e ocultado, não era objectivo de uma tal “epopeia” erótica. Do “Crime do Padre Amaro” aos “Maias” desfilam, na óptica clássica do jogo amoroso entre homem e mulher, todos os casos de conflito entre as exigências de Eros e os obstáculos que a ética cristã opõe, reforçados pelo código social, à manifestação do Desejo sem regras, nem sanções. Ao menos, na aparência. E, para que a demonstração, em Eça há sempre este ‘parti pris’, seja mais pertinente, o autor de “Os Maias” instala-se, à partida, numa espécie de “huis clos” erótico que exclui a aventura, o drama ou a tragédia de que o amor pode ser o centro, quer dizer, das situações banais, abertas, de conteúdo imprevisto mais comum como é de tradição na novelística europeia a partir do século XVIII. “Tudo se passa em família”, ou num estreito círculo de convivência sobre si mesmo centrada. A ficção queirosiana é uma ficção anunciada. O quadro das aventuras de Eros que conhecemos é perfeitamente condicionado. Além da fatalidade inerente à pulsão desejante, Eça cria, constrói, propõe o quadro onde essa pulsão, “a priori”, possa ser exasperada, facilitada sob a forma de transgressão, segundo o código profano.
Não há histórias de “amores” tradicionais, ‘fait divers’ todos, como em Camilo, onde o destino tem a sua parte. São, como na “tragédia grega” ou raciniana ou shakespeariana, “histórias de família”.
Mesmo o “Crime do Padre Amaro” é uma, ou assim se vive. Claro que Amaro e Amélia não são irmãos nem primos, mas simbolicamente são a configuração humana mítica por excelência da nossa cultura: “Adão e Eva”. Felizmente, nesta fase, só discretamente comparece o pendor alegórico, característico da sua ficção. Mas o drama erótico de que ambos são os actores, idealmente irmãos pela situação social e educação provincial, tem-nos a eles como Adão e Eva já expulsos do Paraíso pelo tabu religioso que os devia separar, o do tentador e, naturalmente, Deus. Um Deus que assiste, digamos assim, impassível, à tragédia, mas que a condiciona, embora fora desse trio. O trio do Homem, a Mulher e o Diabo é o trio de todas as ficções amorosas do Ocidente. Uma história de amor são sempre “três pessoas”, mesmo que não exista a terceira. A terceira figura é a que está desenhada em côncavo, a figura do Diabo, personagem central da mitologia queirosiana.
Claro está, na ficção queirosiana a Mulher ocupa o lugar de fascínio e da vítima. Em sentido próprio é Amaro o tentador, mas é também, muito tradicionalmente, o tentado. Dá-se por entendido que é a Mulher o problema do Homem. Mais a mais, numa altura em que o modo de ser e o estatuto “feminino” é de eminentemente passivo. Ao contrário de Flaubert, onde a personagem feminina escolhe o seu destino. Mas muito realisticamente, conforme à nossa realidade portuguesa, Eça coibiu-se de chamar “Luísa” ao seu segundo grande romance». In Eduardo Lourenço, As Saiasde Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.

Cortesia de Gradiva/JDACT