sábado, 21 de abril de 2012

Poesia. Francisco Bugalho. «… nestes poemas de renúncia ao eu, encarnado nas figuras do seu lugar e do seu tempo humanos que, apesar de directamente ligados a outros, ancestrais, que a poesia se abre à eternidade do “dia claro” da palavra»


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Carícias

Carícias sábias minhas mãos buscaram
Por teu corpo em botão, alvorescente;
E meus lábios sonâmbulos pisaram
Branduras de veludo alvo e dormente.

Triunfos nos meus olhos despontaram,
E gritos de clarim e de trombeta
Em meus ouvidos sôfregos soaram,
Como cantos de amor dalgum poeta.

Ritmos de doçuras e quebrantos,
Corpos vergados, como dois acantos, .
Gritaram alto que era doce a vida.

Apertei-te na ânsia de perder-te.
E quando regressei, voltei a ver-te:
Vi-te ainda mais longe e mais perdida.

Soneto de Francisco Bugalho, em C. Vide, 4 Janº 929, [Inédito]

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Sonata
«NA noite clara caminhava. Estrelas frias luziam. A marcha distendia-lhe os músculos, sentia-se sem idade; como se nunca tivesse existido.
O ar tinha para os seus pulmões carícias subtis e frescas e invadia-o uma sensação de imponderabilidade; a certeza de vencer todos os obstáculos. Ia em estado heróico.
A paisagem fria era sua, o céu frio era seu e sentia nos músculos uma força incrível, na terra um trampolim que, se quisesse, o poderia fazer saltar até ao céu. Impossível... nada!... Era sobre a terra um animal feliz e a solidão da noite dava-lhe a impressão de ser o único.
Vieram-lhe desejos de cantar, mas não cantou; de olhos muito abertos sentia uma força interior que, através deles, avassalava tudo. Os ouvidos apreendiam-lhe os menores, os mais subtis ruídos... e conhecia-os. Se não havia de os conhecer!... Aqueles ruídos eram seus também. Ninguém mais os ouvia a não ser Ele. A paisagem continuava dormindo, na noite fria e clara.
Lembrou-se de Siegfried caminhando assim ao luar, capaz de tudo: de tudo!... Pensou-o, ali, passando entre os castanheiros de troncos carcomidos, em atitudes bruxas de espíritos maus...
- Espíritos maus!... repetiu em voz alta, e riu-se, numa gargalhada clara, como a noite. Nem um eco... Só a sua gargalhada dominadora ali. A sua gargalhada fez-lhe um arrepio. Ali dominava, e crispou as mãos, dentro dos bolsos: - Ali dominava! Dominava! Dominava!» In Palavras de Francisco Bugalho, in ‘Poesia’

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