sexta-feira, 13 de abril de 2012

Para uma Leitura do Amor na Poesia de Garrett. Nuno Júdice. Leituras. «… que esse tom irá adquirir o seu ponto mais alto. Poderá sempre falar-se, como é evidente, de Romantismo: ele existe na luta entre extremos, no combate íntimo em que luz e treva se confrontam, com as suas manifestações diversas nas dicotomias ausência-presença, amor-desejo, gozo-dor, etc…»



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«Que Garrett é o inventor da lírica moderna, entendendo por aqui uma poesia liberta de preconceitos formais, não me oferece qualquer dúvida, embora seja preciso separar, dentro da sua obra, esses instantes de revolução formal dos muitos passos em que cedeu ao formalismo clássico ou à convenção romântica. É essa característica inovadora, de resto, que faz dele um dos poucos poetas a poderem sobreviver à primeira metade do nosso século XIX poético; e se isso sucede é porque o voo da modernidade o percorre desde o princípio da sua obra, mesmo em textos marcados por esses modelos neo-clássicos, como a “Lírica de João Mínimo”, onde em não poucos momentos já se encontra a pulsão erótica que o conduz ao verso expansivo:

‘Um ano já correu, foi hoje mesmo,
por estas horas, Délia, neste instante
que nasceu nosso amor - hoje tam doce,
e tam amargo já, que tantas dores
tantas lágrimas, Délia, tem custado […]’
(‘Faz hoje um ano - A Délia’)

Trata-se de uma expressão desinibida e, sobretudo, que transporta a saúde do discurso fluente que corresponde ao tom da confidência. Ouve-se, nestes versos, a voz ‘real’ do poeta, isto é, temos aqui uma escrita em que a verdade da poesia brota de um confessionalismo em que nada há de ‘poético’, no sentido de uma cedência ao artificio e à tradição retórica; e será nos poemas da maturidade, dos anos 1840 e 50, recolhidos em “Folhas Caídas”, que esse tom irá adquirir o seu ponto mais alto. Poderá sempre falar-se, como é evidente, de Romantismo:
  • ele existe na luta entre extremos, no combate íntimo em que luz e treva se confrontam, com as suas manifestações diversas nas dicotomias ausência-presença, amor-desejo, gozo-dor, etc.
 No entanto, para além das influências de escola, Garrett explora todas as inquietações anímicas que o sentimento desperta, fazendo deste livro um repertório da emoção amorosa. Num país cerceado pela timidez afectiva, sem a tradição de uma exposição pública do ser biográfico, o despudor garrettiano, no segredo transparente das alusões à Rosa e à Luz em que revela a identidade da sua amada (a viscondessa da Luz), surge como algo de perturbador, e vai fazer com que a sua poesia tenha sido, em geral, menosprezada, com o acento posto essencialmente no dramaturgo ou no romancista, se ressalvarmos o destaque dado a algumas composições menos carregadas dessa conotação sentimental, como a antologicamente inevitável “Barca Bela”.
Não creio, porém, que valha a pena entrar na questão biográfica para esclarecer estes pontos, dado que Garrett não tem sido dos autores mais desfavorecidos neste aspecto. Limitemo-nos ao texto, e será nele que se irão encontrar os pontos de atenção da novidade e, por que não ainda, modernidade do poeta.
Desde logo num prosaísmo poético que antecipa António Nobre:

‘Que sim? Que antes isso? - Ai, triste!
Não sabes o que pediste.’
(‘Adeus!’)

De facto, a novidade da escrita garrettiana consiste precisamente neste diálogo interior com que todo este poema é construído, traduzindo sucessivas variações de temperamento, numa complexa teia de argumentos que servem para o sujeito se auto-diminuir, elevando a figura amada ao nível celeste do anjo. Veja-se, de resto, a metonímia do ‘meigo azul de teus olhos’ com o ‘azul do céu’, evitando uma anterior caracterização dos olhos azuis como traidores:

‘E mais não quero outros olhos,
negros, negros como são;
que os azuis dão muita esp'rança,
mas fiar-me eu neles, não’.
(‘Olhos negros’ de Flores sem fruto)

Também aqui Garrett inova. Ao contrário da descrição feminina fiel a tópicos, a estereótipos, a figura amada surge, no seu poema, com a imagem física concreta, trazendo uma presença que reforça esse efeito de real, ao atenuar as marcas estilísticas de uma ênfase lírica bebida nos modelos franceses e alemães». In Nuno Júdice, Para uma Leitura do Amor na Poesia de Garrett, Leituras de Almeida Garrett, Revista da Biblioteca Nacional, 1999, Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Cortesia da BNP/JDACT