domingo, 29 de abril de 2012

Navegações Portuguesas: Parte VII. D. João de Castro. «Quando embarca para a Índia a bordo da nau “Grifo”, em 1538, tenta resolver vários problemas com que se debatia a náutica quinhentista: a determinação da longitude, a representação cartográfica, a determinação da latitude, o desvio da agulha...»

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«Cientista notável, soldado aguerrido, navegador exímio, décimo terceiro governador da Índia e seu quarto vice–rei, João de Castro é um dos vultos mais brilhantes do «Humanismo Renascentista» português, produto de uma geração de ouro da cultura portuguesa onde, entre muitos outros, se podem referir os nomes de Pedro Nunes, João de Barros, Damião de Góis, Diogo de Teive, André de Resende, André de Gouveia, António Manuel de Melo, Diogo de Sá.
Supõe-se que nasceu em Lisboa a 27 de Fevereiro de 1500, embora não haja registo escrito, tendo falecido em Goa a 6 de Junho de 1548. Pertencia à alta nobreza portuguesa: era filho segundo de Álvaro de Castro, vedor da fazenda de Manuel I e João III, e de Leonor de Noronha.
A nobreza, na qual João de Castro se inseria, alimentava, em meados do século XVI, a camada superior do aparelho militar e administrativo do Estado; empenhando-se em defender um vasto Império comercial e marítimo, alicerçado em fortalezas, feitorias, possessões territoriais e domínios estratégicos espalhados um pouco por todo o Mundo conhecido. É precisamente no seio deste complexo e amplo espaço político-económico, de dimensão planetária, que João de Castro sobressairá pelas suas qualidades de cientista, pelos seus dotes de comandante militar e pelas suas medidas de carácter administrativo.

Moço fidalgo de Manuel I, acaba por abandonar o paço real, sensivelmente com dezoito anos, para se iniciar na arte da guerra em Tânger. Nesse palco militar permanecerá cerca de nove anos, acabando por ser armado cavaleiro pelo governador da cidade, Duarte de Meneses. Quando regressa a Portugal, por volta de 1527, recebe comendas e honrarias, sendo em seguida recomendado para vários cargos que se desconhecem em concreto.
No ano de 1535 participa activamente numa poderosa armada, que engrossa no Mediterrâneo com forças espanholas, para dar caça ao corsário Kheir-ed-Din, mais conhecido por "Barbarroxa", que era apoiado pelos turcos. Aliás, o Império Turco em processo de expansão tanto para Ocidente, como para em Oriente em direcção às águas do Índico, esteve presente na maioria dos combates em que João de Castro tomou parte. Logo em 1539, quando pisa pela primeira vez solo indiano depara com um cerco a Diu, feito pelas tropas turcas comandadas por Soleimão Baxá; em 1541 participa numa armada, capitaneada por Cristovão da Gama, que assola as costas do Mar Vermelho em busca da frota de galés turcas; quando regressa da Índia(1542) é nomeado capitão-mor da armada de guarda-costa, com a tarefa de salvaguardar as praças marroquinas da investida turca; em 1546, já no seu consulado como 13º governador da Índia, trava uma luta heróica – saindo vencedor - contra uma força onde predominavam turcos, que, novamente, cercava a cidade de Diu.


João de Castro frequentou assiduamente a corte do Infante Luís, irmão de João III, tornando-se amigo chegado do príncipe, chegando mais tarde a dedicar-lhe um dos seus trabalhos, o roteiro "De Lisboa a Goa". Recheada de vultos que consagravam parte do seu tempo a debater temas relacionados com a Cosmografia, a Geografia, a Náutica e a Astronomia, a corte do infante Luís foi gozando do incentivo e patrocínio do poder real, não deixando de ser compreensível que assim fosse, pois as matérias discutidas estavam envolvidas na sustentação do "Império da Pimenta", constituindo os "saberes" estratégicos do domínio português. A presença de Pedro Nunes, neste circulo real, era certamente solicitada , não só por ser professor do Infante Luís e de seu irmão, o Infante Henrique, mas também, possivelmente, devido ao valor erudito das suas propostas e ideias; tendo sido porventura nesse ambiente que João de Castro conheceu o grande matemático. Na verdade, a relação entre os dois homens será rica e frutuosa, com a peculiaridade de ser um dos únicos casos verificados, durante as navegações portuguesas, em que teoria e prática se aliaram, ou seja, pela primeira vez havia alguém do meio naval a solicitar os préstimos do cosmógrafo–mor e, inversamente, alguém a quem este confiava ideias para serem postas em prática.

A obra de João de Castro é uma das mais significativas de entre as que se produziram durante os Descobrimentos. Entre os textos que chegaram até nós avultam três excepcionais roteiros:
  • "De Lisboa a Goa "(1538); 
  • "De Goa a Dio"(1538-1539); 
  • "De Goa a Soez" ou roteiro do "Mar Roxo"(1541); 
  • salientando-se entre os outros escritos a "Notação famosa, e muito proueitosa", a "Enformação que dom João de Crasto governador da Índia mandou a el Rey dom Joam 3º..."; atribuindo-se ainda à sua autoria o "Tratado da Sphaera, por perguntas e respostas a modo de dialogo" e "Da Geographia por modo de Dialogo". Contudo, recentemente, estes dois últimos trabalhos têm sido imputados a outros autores.
Tal dúvida em nada belisca o valor dos estudos de João de Castro, que se cotou como uma das figuras cimeiras, no século XVI, no estudo da Astronomia Náutica e da Oceanografia. Os seus roteiros, esplendorosa obra de registo de dados e reflexão filosófica, mostram o que de melhor se produziu no meio náutico português. Mostram como já se combinava, em meados do século XVI, experimentação e a análise rigorosa da realidade, teoria e prática, experiência empírica e raciocínio hipotético.

O pensamento de João de Castro pronuncia, pois, algo de novo. Quando embarca para a Índia a bordo da nau “Grifo”, em 1538, tenta resolver vários problemas com que se debatia a náutica quinhentista: a determinação da longitude, a representação cartográfica, a determinação da latitude, o desvio da agulha; estudando em simultâneo o regime de ventos, as correntes, o magnetismo terrestre. O seu trabalho a bordo configura, assim, um verdadeiro projecto científico, incentivado a partir da coroa.

Vivendo num período muito particular, dominado por três poderosas correntes intelectuais: a tradição escolástica, o Humanismo, a moderna corrente de pensamento proporcionada pelas navegações, João de Castro revê muitos dos pressupostos em que se baseava o pensamento dominante, não se afastando, porém, de uma certa visão organicista do Mundo, bebida na "ortodoxia" aristótélica.
Preocupado com as condições do seu conhecimento, com o papel dos sentidos na observação, apostado numa nova metodologia epistémica, João de Castro, apesar de não recusar em absoluto os paradigmas tradicionais, não teve receio "de sair da opinião comum", e ao fazê-lo arvorou-se como um dos elos que fazem a ponte entre as navegações portuguesas e a revolução científica do século XVII». In Carlos Manuel Valentim, Instituto Camões.

Cortesia de I. Camões/JDACT