terça-feira, 24 de abril de 2012

As Saias de Elvira e Outros Ensaios. Eduardo Lourenço. «Eça de Queirós foi o primeiro dos nossos escritores que concebeu a sua vida como uma «obra de arte» e tentou mitificá-la com algum sucesso no estetizante Fradique. ‘Graças e horrores da Vida’ é eco de Baudelaire, mais do que de Schopenhauer, mas detrás desta encenação de um realismo atento às trivialidades da vida…»



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«A sombra de Elvira, a musa de Lamartine cantada no “Lago”, poema mítico do primeiro romantismo francês, aparece cedo no texto de Eça. Encontramo-la já nas “Farpas”. As míticas saias da mesma Elvira, símbolo de um erotismo sem Eros dentro, como será o de Eça, aparecem mais tarde.
Todos os leitores de Eça conhecem a abertura da “Correspondência de Fradique Mendes” e a famosa referência ao «rumor das saias de Elvira», símbolo, imagem e fantasma do famigerado lirismo íntimo que a sua nova musa realista se propunha relegar para o museu Grévin do romantismo, sob a alta caução de Hugo e Baudelaire:
  • “Era o tempo em que eu e os meus camaradas do cenáculo, deslumbrados pelo lirismo épico da ‘Légende des Siècles’, o livro que um grande vento nos trouxe de Guernesey, decidíramos abominar e combater a rijos brados o Lirismo Íntimo que, enclausurado nas duas polegadas do coração, não compreendendo dentre todos os rumores do Universo senão o rumor das saias de Elvira, tornava a Poesia, sobretudo em Portugal, uma monótona e interminável confidência de g1órias e martírios de amor”
Neste texto enfático, cheio de ecos das “Prosas Bárbaras”, estas obsessivas ‘saias de Elvira’ são apenas uma maneira de designar o Romantismo e a sua visão idealizada do mundo, da vida, do sentimento, da paixão, do amor, confinados, como ele escreve, às limitadas palpitações do coração. Sem pensar, com tanta determinação como Nietzsche, que todo o ‘idealismo é mentira’, entendendo-se aqui por «idealismo» uma visão da realidade alheia ou imune à pulsão cega instintiva, sem finalidade, tais como Schopenhauer e Darwin a ilustraram (um outro nome para a “ilusão” consubstancial a toda a existência), Eça de Queirós identificou-se cedo com aquilo que, para ele e a sua geração, era e foi sinónimo de Modernidade. À sua maneira estética e diletante, a que convém a Fradique, escreve:
  • ‘um outro filão poético me seduzia, o da Modernidade, a notação fina e sóbria das graças e dos honores da Vida, da Vida ambiente e costumada, tal como a podemos testemunhar ou pressentir nas ruas que todos trilhamos, nas moradas vizinhas das nossas, nos humildes destinos deslizando em torno de nós por penumbras humildes’
Eça de Queirós foi o primeiro dos nossos escritores que concebeu a sua vida como uma «obra de arte» e tentou mitificá-la com algum sucesso no estetizante Fradique. ‘Graças e horrores da Vida’ é eco de Baudelaire, mais do que de Schopenhauer, mas detrás desta encenação de um realismo atento às trivialidades da vida, penetrado muito romanticamente da utopia humanitarista do autor de “Os Miseráveis”, aquilo que subdetermina realmente toda a sua criação e faz dela uma obra, não apenas nova e original na ordem do estilo, mas revolucionária, enquanto figura do nosso imaginário, é o conflito que tem Eros como centro. E como esse Eros e a sua irresistível pulsão irrompem, ou antes, ressurgem, no contexto de uma cultura transfigurada por uma exigência de Amor de uma outra ordem, esse conflito não é outro que o de Eros e Cristo. Ou com mais propriedade, do erotismo e do cristianismo.

A centralidade e a radicalidade da temática erótica em Eça de Queirós não tem, naturalmente, escapado aos mais conhecidos estudiosos da sua obra. Só se fossem cegos.
Mas aparece muitas vezes subordinada às intenções, também óbvias, da crítica ou sátira social, e condicionada por elas, quando o inverso é, não só mais verdadeiro, como de outro alcance. João Gaspar Simões, António José Saraiva, de maneira particularmente inovadora, António Coimbra Martins, dedicaram à oposição Eva-Ave considerações pertinentes, tanto como a nova geração de queirosianos, com particular ênfase da parte de Isabel Pires de Lima, deram à erótica queirosiana o lugar que ela mesma reclama.
Em breves páginas, António José Saraiva, na sua “Tertúlia Ocidental”, foi direito ao essencial:
  • “Objecto mais completo do desejo, a fonte suprema da sensualidade nos romances de Eça, é a fêmea humana, que é também a origem de todo o engano”
In Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.

Cortesia de Gradiva/JDACT