sexta-feira, 23 de março de 2012

Estudos sobre a “Arte D’Os Lusíadas. Ensaios. António José Saraiva. « Assim, os vassalos, tanto os que foram heróis da narrativa, como os que agora se batem “por várias vias”, estão presentes ao olhar das duas personagens entre as quais decorre a mensagem. Dir-se-ia que, como o mago e o estudante, ambos estiveram observando os acontecimentos no globo mágico…»

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Ensaios
Os tempos verbais e a estrutura d'Os Lusíadas
«”Os Lusíadas” estão concebidos como uma mensagem do Poeta ao rei. Segundo o velho modelo da epopeia, o Autor começa por enunciar o seu tema e por invocar as ninfas inspiradoras: despende com isto 5 estrofes. Seguidamente, subindo o tom, dirige-se ao rei, pedindo-lhe atenção para o que lhe vai contar e para ele próprio, Poeta: “Inclinai por um pouco a majestade ,/... vereis um novo exemplo/ De amor dos pátrios feitos valerosos/...”. E, após algumas considerações, das quais parte diz respeito a ele mesmo “Vereis amor da pátria, não movido/ De prémio vil, mas alto e quasi eterno”, parte às façanhas que vai narrar “As verdadeiras, vossas, são tamanhas/ Que excedem as sonhadas, fabulosas” e parte à situação particular do rei Sebastião e do Reino, convida o seu ouvinte a estar atento.
O convite é feito da maneira seguinte: 

Mas enquanto este tempo passa lento
De regerdes os povos, que o desejam,
Dai vós favor ao novo atrevimento,
Pera que estes meus versos vossos sejam;
E vereis ir cortando o salso argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós no mar irado,
E costumai-vos já a ser invocado.

O Poeta convida, portanto, o jovem rei a “ver” a narração. Em três versos seguidos aparecem ao todo três formas do verbo “ver” «vereis», «vejam», «são vistos». Os argonautas portugueses estão já sulcando o mar, algures no Índico, e Camões aponta-os como se ele e o rei estivessem diante de um grande mapa-múndi ou de uma esfera terrestre. Este “address”, que é mais do que uma simples dedicatória, como se vê, ocupa 13 estrofes.
Na conclusão do Poema, o Autor volta a dirigir-se ao seu real ouvinte, tirando a moral da história e incitando-o a novos feitos. É quase um pequeno regimento de príncipes, em l0 estrofes. No início desta conclusão novamente se ouve o apelo a ver o que fazem os vassalos:

Olhai que ledos vão, por várias vias,
Quais rompentes leões e bravos touros
[…]
De vós tão longe, sempre obedientes,
A quaisquer vossos ásperos mandados,
Sem dar reposta, prontos e contentes,
Só com saber que são de vós olhados.
 
“Olha” está aqui usado no sentido de ver. O Autor acaba de mostrar como Vasco da Gama e seus companheiros, para obedecerem ao mandado do rei, enfrentaram os trabalhos e perigos por meio dos quais chegaram à Índia e como, posteriormente, outros se bateram em memoráveis combates. Assim se desempenhou da promessa feita ao destinatário da mensagem no início do Poema:

E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.
 
Está agora autorizado a concluir:

Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.

A repetição das mesmas palavras (gente, excelente) por ordem invertida mostra que a mensagem inicial ao rei envolve todo o Poema e conclui com ele. Mas não é só isso. Camões continua diante do mapa-múndi apontando ao rei os lugares por onde navega e se bate a gente:

Olhai que ledos vão, por várias vias

Quem é que vai “por várias vias”? Os mesmos que são ‘olhados’ ou ‘vistos’, tanto no começo como no fim da mensagem:

E vereis ir cortando o salso argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós [...]
 
no início, e

A quaisquer vossos ásperos mandados,
Sem dar reposta, prontos e contentes,
Só com saber que são de vós olhados.
 
na conclusão.

Assim, os vassalos, tanto os que foram heróis da narrativa, como os que agora se batem “por várias vias”, estão presentes ao olhar das duas personagens entre as quais decorre a mensagem. Dir-se-ia que, como o mago e o estudante, ambos estiveram observando os acontecimentos no globo mágico e, chegados ao fim da visão, se encontram no mesmo sítio onde começaram, como se para eles o tempo não tivesse passado». In António José Saraiva, Estudos sobre a Arte D’Os Lusíadas, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-476-2.

Cortesia de Gradiva/JDACT