quinta-feira, 29 de março de 2012

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «Com o século XVIII as críticas tornaram-se mais frequentes e visavam agora sensibilizar os senhores, tentando demonstrar não tanto a justiça de um melhor tratamento, mas, sobretudo, a maior rentabilidade do negócio. Ao pôr a descoberto as desumanidades do sistema escravista, os autores reformistas tornaram-se nos precursores dos futuros abolicionistas»

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«Nos inícios do século XIX, respondendo em parte às campanhas humanitárias e por certo às transformações de ordem económica registadas, em especial, no mundo colonial, começaram a surgir nalguns países os primeiros actos abolicionistas referentes ao tráfico negreiro. Em França, surgiram as primeiras leis que na Europa condenaram radicalmente o tráfico e a escravidão. Por decreto de 11 de Agosto de 1792, a Convenção proibiu o tráfico de escravos e, a 4 de Fevereiro de 1794, foi abolida a escravidão. Por um momento, tudo levava a crer que à Revolução Francesa se ficaria a dever a consagração definitiva da vitória do antiescravismo. Porém, em 1802, durante o consulado de Napoleão, tráfico e escravidão foram de novo restabelecidos conforme as leis e regulamentos existentes antes de 1789. Em 1804 a Dinamarca proibiu o tráfico negreiro, logo seguida da Inglaterra em 1807. Em 1813 foi a vez da Suécia e em 1814 da Holanda.

A Inglaterra, que de 1715 a 1750 deteve o monopólio do transporte de escravos para as colónias espanholas, motivada por uma série de circunstâncias internas e externas, assumia-se como líder do processo abolicionista. Desde os finais do século XVIII que vinha pressionando as restantes potências coloniais nesse sentido e, aproveitando a ocasião singularmente propícia do Congresso de Viena, em 1814, que reunia representantes de todos os países europeus, internacionalizou a questão. Mas o tráfico negreiro, definido em Viena como sendo a ‘desolação d'África, a degradação da Europa e o flagelo terrível da humanidade’, estava demasiado enraizado nos costumes e nos interesses para poder acabar de um momento para o outro e, muito menos, por imposição estrangeira. O fim do tráfico e da escravatura só mais tarde veio a ter lugar, num percurso lento, por vezes forçado, que se prolongou por quase todo o século XIX. A própria Inglaterra só em 1835 decidiu votar a abolição definitiva e completa da escravidão, que entraria em vigor passados cinco anos nas colónias das Índias Ocidentais, na Guiné, no cabo da Boa Esperança e na ilha Maurícia. Nas Índias Orientais, apenas em 1843 se concedeu a emancipação aos escravos e, em 1844, finalizou o seu processo abolicionista ao decretar o fim da escravatura na colónia de Hong-Kong.

Venda de escravos na costa africana
Museu de Arquitectura de Liége, 1989
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Em Portugal as atitudes críticas à escravidão e ao tráfico negreiro surgiram praticamente desde o início do tráfico atlântico. No entanto, não significavam de modo algum um repúdio pela instituição, uma condenação total, mas antes a restrição da sua prática a determinadas circunstâncias que faziam da escravidão uma instituição justa e legítima, tal como a definiam os teojuristas do século XVI, de acordo com os preceitos do direito natural moderno e a consciência cristã. Estas atitudes fizeram-se por vezes acompanhar de propostas reformistas que procuravam humanizar o sistema. E, se em certos casos essas propostas foram repudiadas ou esquecidas, noutras ocasiões mostraram-se benéficas, ao ponto de suscitarem da coroa medidas legislativas que, total ou parcialmente, as apoiavam. Tanto para o caso do ameríndio, como do oriental e até mesmo do africano, a legislação portuguesa regista a existência de diplomas onde, ao lado das preocupações económicas, se reflectem igualmente os anseios humanitários e a postura religiosa.

Com o século XVIII as críticas tornaram-se mais frequentes e visavam agora sensibilizar os senhores, tentando demonstrar não tanto a justiça de um melhor tratamento, mas, sobretudo, a maior rentabilidade do negócio. Ao pôr a descoberto as desumanidades do sistema escravista, os autores reformistas tornaram-se, mesmo sem querer, nos precursores dos futuros abolicionistas. Os pressupostos abolicionistas portugueses, que se desenvolveram essencialmente a partir dos finais do século XVIII, surgiram em autores residentes no Brasil, ou, de qualquer forma, muito ligados à colónia brasileira». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT