domingo, 19 de fevereiro de 2012

Silva de Azevedo. O Príncipe Sem Coroa: «Que régia majestade e que maternal solicitude a não aureolavam quando, a poucas horas da agonia, lhes entregou, um a um, as espadas de cavaleiros, com um recado particular para cada infante! Era o coroamento de sua missão formativa e informativa na família. Dentro de semanas seriam colhidas as primícias, em Ceuta»


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«Filipa de Lencastre, flor desabrochada na mais extrema e alta ramagem, onde corria a seiva de cem nobilíssimas raízes, tornara-se a discreta dominadora daquele palácio, perfumando a corte de gracioso exemplo, enfeitando a vida do seu Rei e Senhor.
A devassidão que D. Filipa de Lencastre presenciara:
  • ‘Entre as damas gentis da corte inglesa’
Provocara-lhe uma náusea incontida contra a liberdade de costumes. Ao cingir a coroa de Portugal, recentemente conspurcada por Leonor Teles, sumariamente arejou com lufadas radicais aquela atmosfera viciada da corte, onde impôs a sua acção moralizadora, disciplinando especialmente o comportamento feminino.
A prática religiosa era bom preventivo. Incentivou-a. Para dar exemplo (que arrasta), passava as manhãs na igreja em oração, a qual retomava pela tardinha. À noite gastava o “seraão nom… em danças nem em outros desenfadamentos deste mundo, mas em spirituall contemplaçom”.
Com que devotamento não vigiaria ela a saúde do corpo e a higiene moral dos seus filhos! Que régia majestade e que maternal solicitude a não aureolavam quando, a poucas horas da agonia, lhes entregou, um a um, as espadas de cavaleiros, com um recado particular para cada infante! Era o coroamento de sua missão formativa e informativa na família. Dentro de semanas seriam colhidas as primícias, em Ceuta.
  • “Mais la famille... elle s'étend à tout Ie Portugal”, comentou Gonzague de Reynold, ao falar de João I. Realmente, na Casa de Avis (comenta o mesmo estudioso suíço) “sous le faste de la cour, sous l'armure de chevalier, sous l'appareil magnifique de la féodalité”, podiam perceber-se inconfundíveis “des caractères spécifiquement portugais”. Caracteres especificamente portugueses... vejamo-los, portanto, no povo, que é o seu laboratório.
No crisol dos séculos, o território português fora um cadinho: com o ‘substractum’ atlante e ibérico, de marujos e pastores (mar e serras, cenário dos fortes!), se amalgaram os celtas emotivos, os gregos solertes, os romanos utilitaristas, os góticos eugénicos, os árabes industriosos. Nem faltaram os israelitas da Diáspora, precisamente os sefardins, decerto a pura gema da finança e da intelectualidade mosaica. Mas, até estes parcialmente se aportuguesaram, de modo que muitos dos seus descendentes, proscritos mais tarde como corpo estranho, conservaram ou cidadania ou sobrenomes lusos, qual se verifica ainda na Holanda, França, Médio Oriente, Estados Americanos. A resultante foi uma nação cosmorâmica, porém de elites. Resistente. Caleidoscópica, certamente; contudo, etnicamente unificada.

A que atribuir-se essa unidade, com tão desvairadas contribuições raciais? Ao poder genesíaco e assimilador dos primitivos? À força aglutinadora da nossa língua ‘romance’, cuja potência imperial, absorvente, conformadora dum tipo (chamemos-lhe ‘lusíada’) se verificou, com o tempo, noutras latitudes? Referimo-nos, sem dúvida, a um tipo étnico. Como sói inquirir-se, para outros aspectos, mesmo os culturais, dever-se-á alguma coisa à base alimentar, ictiológica, hortícola, venatória, em que fosfatos, vitaminas, proteínas, etc., surdamente moldaram a ‘fácies’ dum organismo? Em sua génese, não teria havido nenhuma relação entre o sol (ou o clima) e o homem ‘lusíada’, tal como já se indagou entre a meteorologia e o clássico tipo grego?
 

jdact e Cortesia de wikipedia

Talvez nesse complexo de causas parciais (‘parciais’, grifemo-lo bem) esteja a resposta, sem omitir ainda esta razão, aparentemente imponderável: a precocidade na adesão ao cristianismo, também regulador da vida. Essa precocidade declarou-se logo, no período apostólico. A purificá-lo, a premuni-lo, não devem ter sido alheias, ainda nos primeiros séculos da nossa era, as relações e câmbio de visitas (até via marítima) com a África Agostiniana e a Patrística do Levante, em geral; eram esses arroios bem chegados à nascente genuína do cristianismo, onde Orósio e outros antepassados nossos foram dessedentar-se.
E porque não sublinharmos a acção renovadora do santo e polígrafo Martinho de Dume? É um tema pouco devassado, o deste húngaro andejo, maravilhoso autor do “Castigatio Rusticorum”. Ao sábio arcebispo e missionário devemos a transformação da imensa diocese de ‘Bracara Augusta’, capital dos Suevos, nossos ancestrais, no arquétipo pré-universitário de Fé e Cultura. Promovendo a reintegração católica de portucalenses e galécios (priscilianistas), reduzindo os restantes agregados pagãos à prática da Lei Cristã, Martinho preparou o núcleo-semente que iria plasmar a ortodoxia nacional e aglutinadora do futuro Portugal afonsino e joanino». In Silva de Azevedo, O Príncipe Sem Coroa, Pontifícia Universidade de S. Paulo, Bertrand Irmãos, Lisboa, 1963.

Cortesia de Bertrand Irmãos/JDACT