quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Dominó Preto. Florbela Espanca. Leituras. «Mas que lindo riso o dela! Muito aberto, muito sonoro, enchia a casa de trilos de pássaros, mostrava-lhe os dentes todos muito sãos, muito brancos, e toda a boca por dentro, muito cor-de-rosa como a polpa carnuda e sumarenta dum morango acabado de colher numa manhã de Primavera»

jdact

«Havia já mais de oito anos que andava atrás dela. E só agora conseguira que ela se resolvesse a ouvi-lo. Há tantos anos, santo Deus! Ainda ele estava moço na mercearia da Rua dos Olivais, ainda nem sonhava em que lhe haviam de dar sociedade na casa, nem tinha amealhado os seis contos de réis que tinha agora na Caixa Geral dos Depósitos, já gostava dela, já gostava de a ver passar, pisando no seu passinho grácil e desenvolto a calçada de pedras pontiagudas. Os gritinhos que ela dava quando punha o pé em falso, o pé de boneca calçado de sapatinhos de verniz com saltos de palmo e meio! E quando entrava na loja! O cubículo escuro, sujo, feio, era de repente um grande salão feérico todo cheio de luzes, deslumbrante de asseio, bonito como nenhum. O pobre caixeirito, de mãos deformadas pelas frieiras, de larga cara bonacheirona e ingénua, ridículo no seu fato de cotim de mangas demasiado curtas, de cabeleira encrespada e sobrancelhas hirsutas, ficava a olhar para ela, esquecido do que lhe tinham pedido, vendo apenas na sua frente a boca fresca e os olhos gaiatos da rapariguinha risonha que, sem piedade, troçava dele constantemente.

Cortesia de florbelaespancalali

Mas que lindo riso o dela! Muito aberto, muito sonoro, enchia a casa de trilos de pássaros, mostrava-lhe os dentes todos muito sãos, muito brancos, e toda a boca por dentro, muito cor-de-rosa como a polpa carnuda e sumarenta dum morango acabado de colher numa manhã de Primavera.
No banco da avenida, sob a acácia já cheiinha de folhas, noite escura, o Joaquim entretinha-se a passar religiosamente as contas do seu rosário de recordações, doces e amargas recordações dos longos anos que passara atrás dela, inutilmente, mendigando sem se cansar um bocadinho de amor que matasse a fome e a sede ao seu corpo de adolescente casto que nunca se atrevera a seguir uma mulher pelas ruas escusas, pelos cantos misteriosos, quando a cidade cúmplice fecha os olhos e finge que dorme.
Sempre gostara daquela, daquela só, e um dia – já lá iam dois anos! - enchera-se de coragem e dissera-lho. A gargalhada que ela lhe dera na cara! Tinha-a ainda nos ouvidos, aquela divertida e escarnecedora gargalhada que lhe fizera chegar as lágrimas aos olhos.

Ele era um pobre diabo, mas queria-a, queria-a como sabem querer os rústicos das suas montanhas, queria-a com todo o ardor dos seus vinte anos, cheios de seiva como um chaparro novo, queria ganhá-la custasse o que custasse, embora tivesse de andar de rastos atrás dela a vida inteira. Tinha tempo! E assim fez: trabalhou sem descanso e sem desalento meses e meses, todos os dias do ano, quer de Inverno quer de Verão, mal luzia o Sol no alto até noite fechada, sem domingos nem dias santos. Mal pago e mal alimentado, mourejou e fez vontades, foi servo de toda a gente, com a tenaz ideia fixa encasquetada a martelo no estúpido bestunto, sem querer saber de mais nada, não dando conta do que ia pelo mundo, do que se passava para além do encardido balcão de pinho, onde lhe ia correndo a mocidade, agrilhoado ao trabalho corno um escravo.

Cortesia de florbelaespancalali

O patrão, com o andar dos tempos, deu finalmente por ele, observou-o, e um belo dia, deitando contas ao lucro que podia tirar duma boa acção, mandou-o ensinar a ler. À noite, depois da loja varrida e tudo arrumado, que o patrão não se ensaiava para lhe pregar dois murros bem puxados, a rapazito descia os dois degraus que faziam comunicar a lojeca com a húmida toca onde dormia. Ah, se as paredes pudessem falar! Um coto de vela a arder sobre a única cadeira de pau e, sentado na cama de tábuas, as mãos crispadas nos cabelos rijos, cabelos de fome, a cabeça tonta, doido de sono, o pobre lá ia decifrando as letras, soletrando, juntando as sílabas, estudando a lição para o outro dia, à custa de esforços desesperados e duma força de vontade que nenhuma força poderia vencer. Quando compreendia, a larga cara bonacheirona iluminava-se-lhe num sorriso que entre aquelas quatro paredes, onde as aranhas teciam tranquilamente as suas teias de seda e prata fosca, era por si só um belo milagre de amor! É nestas almas simples que o amor é mais puro e mais forte. O manancial de águas claras que na planície vai matar sedes e reverdecer os campos, jorra do seio das duras pedras das montanhas em sítios agrestes, longe e alto!». In Florbela Espanca, O Dominó Preto, Livraria Bertrand, 1982.

Cortesia da L. Bertrand/JDACT