quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Almeida Garrett no Romantismo Europeu. Helder Macedo. «… a revisão de perspectivas que a sua obra talvez justificasse. Mas poderei, pelo menos, partilhar algumas das minhas perplexidades. E talvez que, ao fazê-lo, também consiga dizer alguma coisa sobre a posição de Garrett no romantismo europeu»

Cortesia de notapositiva

«Almeida Garrett nunca é um escritor evidente. Por exemplo, como em tempos procurei demonstrar, dialogando com a mestre pioneira dos estudos garretteanos modernos, Ofélia Paiva Monteiro, há uma profunda unidade temática e estrutural na aparente disjunção das “Viagens na Minha Terra”. A aparência, em Garrett, é muitas vezes um significante literário que necessita de ser entendido em conjunto com outros significantes, um modo de não ser apenas o que parece estar a ser e de não dizer apenas o que parece estar a dizer. Garrett foi o fundador do romantismo português. E tendo em mente as características fundamentais do romantismo europeu, é incontroverso que ele fez em português e em Portugal o que outros românticos fizeram nas suas diversas línguas e países, desde a afirmação da consciência individual até à adopção de causas sociais progressivas, da recuperação de tradições nacionais até à procura experimental de novas articulações estéticas. Para caracterizar o seu romantismo poderia portanto parecer bastante inventariar o que ele fez e comparar com o que outros românticos fizeram, acentuando afinidades e inter-relações. Mas de cada vez que releio os meus textos favoritos de Garrett fico mais perplexo. Com efeito, não sei se caracterizar Garrett como o romântico que, sem dúvida, foi, aluda a ir mais fundo do que a superfície dos seus textos. Certamente não conseguirei sequer sugerir aqui a revisão de perspectivas que a sua obra talvez justificasse. Mas poderei, pelo menos, partilhar algumas das minhas perplexidades. E talvez que, ao fazê-lo, também consiga dizer alguma coisa sobre a posição de Garrett no romantismo europeu.

Cortesia de aprovadosnoves

Isto obriga-me, no entanto, a outra confissão prévia: quanto mais leio, também menos sei o que sela o romantismo. Sei, é claro, o que dizem os manuais e os dicionários, aprendi quando aconteceu, onde e porquê, li algumas das obras que o consenso da opinião bem informada caracteriza como românticas. Mas li também outras onde se encontram as mesmas características, e que foram escritas muito antes e bastante depois de os arrumadores das almas literárias que somos nós, os críticos, termos vindo a separar o romantismo dos vários outros ismos anteriores e posteriores. Essas categorizações aliás só funcionam quando aplicadas, de uma perspectiva historicista, em termos do que houve antes e se fez depois. Por exemplo, romantismo ‘versus’ realismo ou classicismo. Mas, da perspectiva dos textos em si próprios, são distinções muito precárias. August Schlegel, retomando o termo «Romantisch» primeiro usado pelo irmão, Friedrich, num contexto literário, foi quem depois veio caracterizar o romantismo por contraste com o classicismo. Mas qual classicismo? Certamente não o de Camões, em quem os próprios irmãos Schlegel viam um espírito romântico próximo do seu. E, a quem Garrett, o fundador e o supremo exemplo do romantismo português, caracterizou em termos que de classicismo pouco tinham.
Recordemos a passagem revelante do Capítulo VI das “Viagens na Minha Terra”, onde logo no sumário que o precede Garrett declara:
  • «Desgraça do Camões ter nascido antes do romantismo».
E faz depois, no corpo do texto, a defesa das misturas de planos de significação que a crítica purista, a que sabia o que deveria ser o classicismo, mesmo que o não seja, atacava n'Os Lusíadas”. Camões, ironiza Garrett «o criador da epopeia e, depois de Dante, da poesia moderna», tinha-se visto «entalado» entre várias perspectivas estéticas e crenças contraditórias, «viu-se atrapalhado», a solução que encontrou foi misturar tudo, «e fez, ‘tranchons le mot’, uma sensaboria». O problema, no entanto, continua ironizando Garrett, é que «não havia ainda, então, românticos nem romantismo; o século estava muito atrasado».

Cortesia de portalsaofrancisco

E por isso ele, Garrett, a despeito das previsíveis «zaguachadas» da crítica, ao ver-se igualmente «atrapalhado» ia tentar realizar ali uma equivalente «sensaboria» para sair de uma equivalente «entalação». Ou seja:
  • ao justificar os supostos erros de Camões da perspectiva da estética romântica, agora que o século já não estava assim tão atrasado... - Garrett identificou o grande mestre do classicismo português como o mestre moderno do seu próprio romantismo. O que também quer dizer, é claro, que já havia românticos antes do que veio a ser chamado romantismo.
Quanto à outra categoria contrastiva, o realismo, foi Stendhal, que só cronologicamente poderia ser classificado como romântico, quem primeiro declarou que uma novela deve ser como um espelho a passear por uma estrela. E esta metáfora está na base da estética impessoal do realismo, como veio a ser definida por Hypolite Taine quando determinou que a novela devia ser como «uma espécie de espelho portátil que pode ser dirigido não importa onde e, assim, convenientemente reflectir todos os aspectos da natureza e da vida». A partir daí, levando essa prolixa comparação mais a sério do que Stendhal, na sua prática literária, alguma vez havia levado a sua sucinta metáfora, os adeptos do realismo passaram a insistir na noção de que o autor deve ser neutro e não interveniente, para desse modo assegurar a objectividade do “mostrar” em oposição à subjectividade do “contar”. A intervenção explícita do eu autoral no texto que está a compor, que é a maneira romântica, mas também camoniana, gostosamente desenvolvida por Garrett nas “Viagens”, tinha portanto de ser proscrita como um terrível pecado contra a verdade do realismo. Mas ele há também outras verdades, entre as quais a verdade do texto, e não é menos verdade, como disse Todorov que «todos os romances contam a história da sua própria criação, a sua própria história». Essa história implícita necessariamente inclui a história do autor que a está escrevendo e, portanto, mesmo se disfarçadamente, a revelar a sua subjectividade no que escreve». In Helder Macedo, Leituras de Almeida Garrett, Revista da Biblioteca Nacional, 1999, Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Cortesia da BNP/JDACT