quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Alfredo Alves. D. Henrique o Infante. Memória Histórica: Parte VII. «…asseveravam os ‘sages’ doutores. E citavam o facto milagroso sucedido a Afonso de Castela no grande dia da batalha das Navas de Tolosa, em que um Anjo o guiou através as serranias para atacar de flanco o Miramolim; lembravam as façanhas do piedoso Fernando, que tomou Coimbra, e as do legendário Cid»

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A Tomada de Ceuta
«Que era empresa gloriosa e temerária; observara ele; mas seria ela do agrado de Deus? Consultaria, para conhecer este ponto, os seus confessores e letrados, homens ‘sages’ e prudentes. E efectivamente Fr. Joao Xira, o confessor, e Fr. Vasco Pereira foram chamados a conselho.
«Não houve mister de queimar muitas candeias», escreve pitorescamente Azurara, para os religiosos doutos mostrarem a excelência do desígnio.
Ceuta, essa cidade que Abdabiz considerava como fundada por um neto de Noé, duzentos e trinta e três anos após o ‘Dilúvio’, dando-lhe o nome de “Ceyt” (em chaldaico, “começo de formosura”); que fora a causa da perdição das Hespanhas, no século VIII, que era como um diamante engastado na coroa da misteriosa África, seria, sem dúvida, um digno objecto de conquista para um príncipe cristão. Sim, Deus auxiliaria, asseveravam os ‘sages’ doutores. E citavam o facto milagroso sucedido a Afonso de Castela no grande dia da batalha das Navas de Tolosa, em que um Anjo o guiou através as serranias para atacar de flanco o Miramolim; lembravam as façanhas do piedoso Fernando, que tomou Coimbra, e as do legendário Cid; referiam as conquistas valentíssimas do nosso primeiro Afonso; vinham à citação os decretos dos Santos e as leis de Justiniano; e tudo queria convergir ao fim de mostrar quanto era justa a empresa, digna da protecção do Pontífice.
João I ouviu, ouviu, e respondeu aos letrados que lhe escrevessem aquilo tudo que diziam. E fazendo-se grave, começou a alegar que o reino estava pobre, exausto por demoradas guerras e secas e fomes; que nem havia gente para levantar; que Ceuta era distante e o poder dos mouros imenso; que se Deus permitisse ele conquistatá-la não poderia certamente segurar essa nova jóia da Cristandade, por mingua de cabedal e de gente, e então seria essa empresa «como um pão que se lança da mão»; que depois os mouros rapinariam, em represálias, no Algarve… E muitas mais razões, muitas, alegou ali o Rei; e os Infantes, em silêncio, ouvindo, tristes.
Afinal João I chamando um dia o infante Henrique, disse-lhe, a sós, com modo risonho:
- Ora bem, filho, como falaste mais do que teus irmãos mostra-me o que pensas acerca do que disse.


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E o mancebo, um pouco trémulo de comoção, principiou dizendo que eram os irmãos que mais força lhe davam ao desígnio; que ele bem ambicionava a gloriosa Cavalaria, mas sendo de tão pouca idade e inexperiente, não podia ir de encontro aos prudentes ditames de seu senhor pai e rei; que a este obedeceria em tudo e por tudo; mas… - observava discretamente, que se lembrasse Sua Real Senhoria que bem fadigosos trabalhos passara e bem arriscados lances vencera para conseguir a sua aclamação e que, Deus ajudando, tudo se alcança; que não temesse ir melindrar os de Castela com a conquista de Ceuta, nem isso seria perigoso para a independência de Portugal, ao contrario, pensava ele, pois assim a nação tornava-se mais temida porque se ampliava em território.

Neste dizer já se esboçava bem perceptível, o pensamento ‘económico’ do Infante em engrandecer o país pela colonização. Em seu entender as colónias, essas desagregações da mãe-pátria, e partes constitutivas desta, não perdiam a coesão, antes as considerava perfeitamente assimiláveis de modo a conservarem a homogeneidade.
Mas em oposição as alegações de dificuldades apresentadas por João I, dizia Henrique: - Que diminuísse o Rei as despesas da corte; que quitasse o dinheiro necessário para a expedição por ‘escaimbo’ com os mercadores abastados de Lisboa e do Porto. Também, afirmava ele, todos os moradores dos outros concelhos e os nobres e as Ordens militares contribuiriam para o grande feito. Se eram necessários muitos navios para a armada que fosse a Ceuta, arranjar-se-iam eles facilmente; muitos havia nos portos do reino, outros ‘tresfegavam’ entre estes e os do estrangeiro, podia-se mandar que eles recolhessem; grande numero chegava a cada passo da Galiza e lá da Biscaia, ao frete, e até as galeaças de Génova, que vinham ao trigo, podiam bem, antes de receberem carga, ir tirar lucros com a expedição africana. João I ouvira o infante Henrique, e abraçou o, com júbilo. Era valente e expedito o filho, pensou o rei. E a todos eles, reunidos depois, disse com voz clara: - Ora esta bem, rapazes. Todo o ‘mester’ quer tempo de aprendiz, e o oficio das armas e duro e aquele que o pretende seguir bem carece de exercício, em verdade. Ora, portanto, com Deus, tratarei de vossa ‘tenção de guisa’ que não ficareis mal contentes.
Grande júbilo tiveram os Infantes com o consentimento do pai e davam já largas à sua alegria.
- Segredo, recomendou-lhes aquele, guardai segredo!
Soube contudo a Rainha o desígnio dos Infantes e com a sua serenidade habitual beijou-os, dizendo-lhes:
—Que Deus abençoe o vosso cometimento!

E nas suas orações começou desde então encomendando ao céu o projectado feito (24)». In Alfredo Alves, D. Henrique o Infante, Typografia do Commercio do Porto, 1894G 286, H5A53, Porto.

Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT