sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

V. O. T. de S. Francisco. Guimarães. Agenda Franciscana: «Como é sabido, os painéis de azulejos da capela-mor da igreja conventual não estão assinados nem datados, mas a generalidade dos especialistas consideram-nos da primeira metade do século XVIII»


Cortesia de votguimaraes

Milagre do Ladrão. Ponto da Situação
Passou mais um aniversário do “Milagre do Ladrão”, efeméride que era celebrada outrora com missa cantada em honra de Santo António. Já por diversas vezes abordamos nesta "Agenda" a história do "Milagre do Ladrão". As investigações levadas recentemente a efeito forneceram-nos novos elementos, alguns deles de inegável interesse, pelo que conviria fazer agora o ponto da situação.

A mais antiga narração do “milagre”
A primeira narrativa do “Milagre do Ladrão” consta da Novena para “os treze dias do preclaríssimo e sempre piedoso Santo António de Lisboa”, de Frei Fernando da Soledade, publicada em Lisboa no ano de 1711, poucos meses depois do acontecimento. A notícia do milagre correu como rastilho pelo país fora dando origem a uma romaria muito concorrida ao altar de Santo António existente neste convento.

A narrativa do “milagre” segundo a “História Seráfica”
O mesmo Frei Fernando da Soledade, no V tomo da sua “Historia Serafica chonologica da Ordem de S. Francisco na provincia de Portugal”, impressa em Lisboa em 1721; escreveu a págs. 1136 e seguintes que:
  • " ... naõ bastou porèm este exemplo para que os ladrões lhe guardasse [à imagem de Santo António] o respeyto devido, porq' no anno de 1710, em a madrugada de huma terça feyra vinte & nove de Abril, manifestou a luz da Aurora o castigo de outro ladraõ, que pretendia profanar o sagrado da sua Capella ou fosse para roubarlhe o que tinha, ou para despojar a Igreja do precioso, como se presume. Chamava-se Manoel Dias, & os da sua idade já passavão do numero de setenta annos, tempo mais próprio para ajustar as contas da consciência, do que para obrigalla cõ hum excesso taõ grave a mayores dividas. Porem o semblante, que ordinariamente he o mostrador das inclinações, naõ prometia nas suas menores temeridades, porq' infundia pavor. Era natural do Bispado de Coimbra na vida mëdigo, & naõ satisfeyto com as caridades dos fieis, appetecendo por ventura opulências, & abundâncias, se expoz a esta empreza com taõ adversa fortuna, que logo no primeyro encontro se vio prostrado.


Cortesia de votguimarães

  • Está plantada a Igreja do dito Convento [de S. Francisco de Guimarães] de modo que para a banda do Norte fique sepultada na terra em bastante altura, & por essa razaõ a fresta da Capella de Santo Antonio, que existe da mesma parte, não dista do chaõ mais do que seis palmos. Pareceo ao ladraõ fácil por esta fresta a envestidura, e porque os ferros della eraõ delgados, & consumidos da sua muyta antiguidade; E dando mãos ao empenho despregou a rede que defendia a vidraça; porèm naõ proseguio, porque a mesma rede, concorrendo superior impulso que o lançou por terra, o pescou. Por espaço de três varas se foy arrastando debayxo della, & naõ pode mais, porque tinha hüa perna fora de seu lugar, cujas dores o atormentavaõ com grande excesso em competência dos assombros da sua própria confusaõ, vendo que o seu peccado seria brevemente manifesto a todo o mundo. As primeyras creaturas que o achráraõ foraõ certas mulheres, as quaes persuadidas, que algu deste homem o havia posto naquelle estado, tangeraõ o sino da portaria chamando aos Religiosos para que o confessassem. Vendo porèm a rede, & logo hum martelo, & juntamente hum bordaõ ferrado, que por sua grandeza mais parecia instromëto de insultos, do que arrimo de membros debilitados, entenderaõ que era differente o motivo da sua moléstia, a qual o próprio ladraõ lhes insinuou, declarando, q' estava castigado por Santo Antonio. Com muyta piedade o recolhèraõ os Religiosos, & examinando-o com varias perguntas, nunca foy possível ouvir da sua boca mais que as sobreditas palavras, & que queria confessarse. Chamáraõ Cirurgiões para verlhe a perna, os quaes a acharaõ deslocada na coyxa, & a nòs desta recolhida para a parte de dentro, cuja circunstãcia tiveraõ por maravilha.

Cortesia de votguimaraes

  • Parecendo aos Padres que por estar contrito o facinoroso, se compadeceria delle o milagroso Santo, depois de confessado o leváraõ ao seu Altar; porèm como já neste tempo era copioso o concurso da gente, o recolheraõ na Capella mòr; e como nem aqui o podiaõ defender do pezo da multidaõ, o transferiraõ, & puzaraõ no pulpito, para que todos, sem algum lhe tocar o vissem, & também ouvissem este prègador de desenganos os que fossem parecidos com elle nos costumes. Aqui tinha de fronte a sagrada Imagem de Santo Antonio para pedirlhe perdaõ da offensa, & remédio á sua desgraça; porèm o Céo devia estar muyto irado contra a protervia, porque a sagrada Effigie deo a entender que tambë Santo Antonio o estava, sahindo do seu braço direyto tal corrente de agua, que molhando todas petições, & fitas que as prendiaõ ao cordaõ, ensopou grande parte da toalha do Altar, & mais adiante corrèra, se logo a devoçaõ naõ tratara de aproveytar nos lenços, & outras prendas estes milagrosos orvalhos, cujas relíquias obráraõ prodígios. O Juiz de fora que com os seus Officiaes estava presente mandou fazer hum auto para justificaçaõ perpetua da verdade deste portento, o qual continuou atè depois do meyo dia em que se foy deminuindo atè ficarë somente no pulso duas lágrimas que perseveràraõ largo espaço. Toda a Villa festejou no dia seguinte o successo com luminarias; & na quinta feyra alguns devotos com huma plausível solemnidade na mesma Igreja, estando o Senhor exposto ás attençoens Catholicas, as quaes ouviraõ explanar do púlpito as maravilhas mëcionadas com erudiçaõ elegante. Nos três dias seguintes continuáraõ na Villa os festejos de cavallaria, & touros, como proemio da grandiosa celebridade que se havia de tributar, & com effeyto se dedicou ao mesmo Santo no mez de Junho. Só as tristezas ficáraõ para o ladraõ, que os nosso Padres de noyte entregráraõ á Misericórdia para curarlhe o corpo, porèm naõ deyxaraõ de assistirlhe com o remédio d'alma nos dous mezes que viveo; & ultimamente a seu rogo lhe deraõ sepultura no adro da Igreja defronte da porta principal”

O quadro do “Milagre do Ladrão”
Cortesia de votguimaraes

No Arquivo da Venerável Ordem Terceira de S. Francisco, encontra-se, entre outras peças de arte, uma tela do século XVIII onde se encontram representados, tal como nos azulejos da capela-mor da igreja, os dois episódios do “milagre do Ladrão”: à esquerda, o ladrão coberto com a grade; à direita, o ladrão, o Juiz de Fora e seus oficiais, e os religiosos, recolhendo a água que corre da imagem do Santo. No rodapé do quadro, lê-se:
  • “Retrato de Manoel dias natural de Coimbra; este quis Roubar a Capella de Sto Antº e tendo tirado a Rede da Vidraça cahio com ella e desconjuntou huma perna com que não pode fugir athe pela manhã chegarão humas molheres chamarão a dous Religiosos que o vierão alevantar // Levando á igreja diante de Santo Anftº chegou a elle o doutor Juis de fora e lhe quis fazer algumas preguntas, e neste tempo suou o Santo pelo rosto e mãos, que molhou mta somma de lenços das pessoas que estavão prezentes, em29 de Abril de 1710”.



Datação do painel de azulejos que representa o “Milagre do Ladrão”
Como é sabido, os painéis de azulejos da capela-mor da igreja conventual não estão assinados nem datados, mas a generalidade dos especialistas consideram-nos da primeira metade do século XVIII.
Santos Simões (Azulejaria em Portugal no século XVIII, 1979) integra estes azulejos no ciclo dos Oliveira Bernardes e afirma que teriam sido executados entre 1720 e 1730, enquanto José Meco ("O Azulejo em Portugal”, Edições Alfa, 1989) atribui estes painéis, com reservas, a Teotónio dos Santos, embora admita certas semelhanças com a obra de Manuel dos Santos.
Sendo assim, os painéis teriam sido executados antes de 1726. Se a estes dado acrescentarmos o facto de nestes painéis estar representado o "Milagre do Ladrão" ocorrido em 29 de Abril de 1710, poderíamos concluir que estes azulejos foram executados entre 1710 e 1726.

Cortesia de votguimaraes

Uma análise mais aprofundada do livro de Craesbeeck poderá suscitar algumas dúvidas acerca deste raciocínio. Com efeito, diz o monografo; “a capella-mor desta igreja he muito grave e magestosa e clarissima pellas muitas luses de vidraças, que tem nas paredes das ilhargas, e toda cuberta de rico azolejo. O retabulo he muito bem dourado e a tribuna magestoza; e no arco tem sua grade de pao santo, com que se fecha a dita capella, pella entrada do dito arco; dentro, logo ao pée das grades, tem duas portas, huma de cada banda: a da parte do evangelho vai para a capella da [...]; a da oarte da epistola vai pra a capella do Santo Christo”.
Deste texto podemos concluir que, em 1726 (data da escrita do livro), toda a capela-mor estava coberta de ricos azulejos e que nela estavam rasgadas duas portas, uma das quais (a da parte do evangelho) dava acesso a uma capela que o autor não identifica, mas que só pode ser a capela dos Almadas, no absidíolo norte. Ota, se havia uma porta de acesso a essa capela, não havia o painel de azulejos com o "Milagre do Ladrão”. Daí se concluiria que este painel teria sido executado mais tarde, depois de ter sido eliminada a porta de acesso ao absidíolo do lado do evangelho, o que teria ocorrido depois de 1726, porque, segundo Craesbeeck nessa altura essa porta ainda existia... a menos que Craesbeeck se tenha enganado acerca da existência dessa porta, o que é pouco provável.

Cortesia de votguimaraes

Parece mais plausível que Craesbeeck de facto, tenha visto as duas portas antes da execução dos azulejos, e tenha visto mais tarde a capela-mor "toda cuberta de rico azolejo”, quando essa porta já havia sido eliminada deixando um largo espaço preenchido com representação azulejar do "Milagre do Ladrão”». In Fernando José Teixeira, Belmiro Jordão, Venerável Ordem Terceira de S. Francisco de Guimarães, Agenda Franciscana, Ano III, 4, Abril de 2004.

Cortesia de VOT de S. Francisco/JDACT