terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Maria Ana M. Guedes. Interferência e Integração dos Portugueses na Birmânia, ca 1580-1630. Parte VI: Reis e Mercadores. «O estudo das forças em jogo revela problemas locais e conjunturais semelhantes aos que se manifestariam no período entre 1581 e 1630. Ou seriam estruturais? De que modo se relacionam com o carácter da presença portuguesa? O que se passava então nas diferentes regiões da Birmânia?

Cortesia de foriente

[...] Reino de Gentios que chamam de Berma e o rei mesmo o é. Não há nele mouros porquanto não tem porto de mar de que se possam servir para seus tratos [...] muitas vezes teve guerra com o rei de Pegu. Deste reino não há mais informações porque não há nele navegações. Somente de uma banda confina com o de Bengala e da outra com o Pegu. In Duarte Barbosa, ca 1516

Reis e Mercadores. Notas sobre a Birmânia à chegada dos Portugueses
«Quando nos inícios do séc. XVI os Portugueses chegaram à Birmânia, o país encontrava-se, desde a dissolução do ‘Império Pagan’, fragmentado em vários reinos cujos governantes se ligavam por laços familiares, feudais, e económicos. Pegu, Arracão, e Ava eram os mais importantes entre eles.
A zona interior, centrada em Ava, onde se fixara a capital em 1364, vivia essencialmente virada sobre si própria. A sua economia baseava-se na agricultura, que a posição no vale do Irrauadi e os sistemas de irrigação lhe proporcionavam. É verdade que rotas comerciais a ligavam desde longa data ao exterior, caso da China, da Índia, e do Arracão, mas perdera o controle sobre as regiões costeiras devido aos condicionalismos geográficos e às circunstâncias políticas.

Em contraste, nas regiões do delta e do Arracão tinham-se fundado novas capitais nas cidades marítimas de Pegu e Mrauk-U (ou Myohaung). Devido a condições geográficas, climatéricas (como as posições litorais, a chuva intensa e os terrenos alagadiçoss), e políticas (como a independência alcançada em relação às formações políticas tradicionalmente fixadas no interior), a sua sobrevivência económica dependia essencialmente do comércio. Eram reinos conhecidos e conhecedores do mundo que então fervilhava no Oceano Indico.

Cortesia de foriente

No século XV, enquanto birmanes e shans se batiam pelo poder no interior do país, arracaneses e mons, que tinham escapado às tentativas de absorção por parte dos reis de Ava, iam garantindo autonomia económica, virando-se cada vez mais para o exterior. As três zonas afirmavam na época com particular vigor os seus contrastes e as suas vocações. A terra dos birmanes era a terra de gentios, i. e., a região dos impérios, das forças centralizadoras, a terra dos reis.
As terras dos mons e dos arracaneses eram, como também notariam os europeus, regiões dos gentios colectores de lucros directos ou de rendimentos alfandegários provenientes do comércio, e também dos comerciantes estrangeiros (como Indianos primeiro, Muçulmanos depois, e portugueses mais tarde), as terras de mercadores. Daí o estabelecimento dos portugueses nas zonas costeiras, já que o interesse e a razão das suas viagens eram sobretudo comerciais.
A caracterização da época seria linear se limitada a estes traços largos, afinal sugeridos no título do capítulo. Por outro lado, o estudo das forças em jogo revela problemas locais e conjunturais semelhantes aos que se manifestariam no período entre 1581 e 1630. Ou seriam estruturais? De que modo se relacionam com o carácter da presença portuguesa? O que se passava então nas diferentes regiões da Birmânia?

 
Cortesia de foriente

Em Ava o poder tinha sido usurpado pelos shans, que aí se mantiveram até 1427. De começo, o reino prosperou, ao ponto de os governantes se identificarem com os imperadores de Pagan e tentarem fazer feudatários os territórios que aqueles tinham subjugado. Assim mantiveram guerra incessante com Pegu, seu principal rival, e tentaram fazer feudatário o Arracão. Não conseguiram atingir nenhum dos dois objectivos. O Pegu revelou-se poderoso adversário, impedindo a sua própria anexação e contribuindo para evitar a do Arracão, com a qual se aliou na primeira década de quatrocentos. O rei arracanês acabou por se refugiar em Bengala. Apesar das hostilidades, Ava e Pegu mantinham-se ligados por 1aços familiares entre os governantes e, de certo modo, amigáveis. Htin Aung foi quem melhor vincou esse aspecto, notando também que a principal razão das guerras foi o acesso aos portos de mar. Daí que o rei de Ava, Minkhamaung (r. 1401-1422), tivesse celebrado um acordo com o de Pegu, Razadarit (r. 1385-1423), pelo qual lhe deu a sua irmã em casamento em troca dos rendimentos alfandegários do porto de Cosmin, actual Bassein. O rei mon aceitou a princesa mas infringiu o acordo; Bassein manteve-se sob controle dos seus funcionários administrativos.
Durante a ocupação de Ava pelos shans, os birmanes que tinham feito de Tangu o seu refúgio, preparavam-se para ocupar o lugar de senhores do território que anteriormente tinham controlado. Um dos reis de Tangu fundaria uma dinastia birmane em Ava, iniciada em 1427 e reinante à chegada dos Portugueses às costas da Birmânia. Contudo, nenhum dos reis dessa dinastia logrou unir os birmanes, que, na maioria, permaneceram em Tangu e os olharam como fantoches dos shans. Tangu, e não Ava, era então o reino birmane por excelência, como registavam as fontes da época, caso de Barbosa, que o designa pelo nome desse grupo étnico. Nos começos do séc. XVI governava Ava o último soberano daquela dinastia birmane, que encontraria o seu fim em 1527.

Com efeito, à chegada dos Portugueses, o reino atravessava sérias dificuldades internas (como o crescimento do ‘shangha’) e externas (como as invasões shans), que procurava debelar através de desesperadas e inúteis alianças com os reis também birmanes de Tangu, esses sim, força política emergente». In Maria Ana Masques Guedes, Interferência e Integração dos Portugueses na Birmânia, ca 1580-1630, Fundação Oriente, ISBN 972-9440-28-X.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT