sábado, 14 de janeiro de 2012

Luísa Sigea. Diálogo de Duas Jovens sobre a Vida na Corte e a Vida Particular. Isabel de Magalhães: «Na verdade, quando começais a dedicar-vos aos príncipes, eles tomam-vos com o anzol da honra e das dignidades, depois, pelo longo uso e hábito desta tristeza, ficais presos necessariamente nesta imundície, por fim, este uso afecta-nos de tal forma…»

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NOTA: Tradução de excertos, realizada por Maria do Rosário Laureano Santos, a partir do original em latim: “Colloquium duorum virginum de vita aulica et privata, de 1552”. Não existe nenhuma versão portuguesa, apenas uma tradução francesa publicada em edição bilingue: “Louise Sigéé. Dialogue de deux jeunes filles sur la vie de cour et la vie privée”. Introdução, trad. e notas por Odette Sauvage. Paris, PUF, 1970.

Luísa Sigea
IX
Blesila: Reconheces tu Flamínia, os ganhos e as perdas? Por que razão então persistes em louvar o serviço dos príncipes? Não leste no “Livro dos Reis” acerca de Nabutha, que fora lapidado pelo povo porque louvara a Deus e ao rei? Por que motivo, pergunto-te, a não ser porque conferiu tanta honra ao rei como a Deus? Não leste também o Profeta onde diz:
  • “Foram aniquilados todos os que foram exaltados por causa do ouro e da prata?”
Não leste no “Livro do Apocalipse” o que se canta sobre os príncipes sob o nome da mulher vestida de púrpura? E não leste o que diz sobre a morte deste e as blasfémias escritas na fronte? E sobre as sete montanhas, sobre as muitas águas, sobre a Babilónia, onde designa a corte dos príncipes. Para não ir mais além, não leste o que disse o anjo no mesmo passo:
  • “Saí dela (disse o Senhor), ó meu povo, fugi do meio da Babilónia, não sejais participantes nos seus pecados e não aceiteis as suas calamidades; salvai vós, cada um por si, a sua alma. Caiu, por fim, caiu a grande Babilónia e tornou-se a casa dos demónios e a prisão do espírito imundo.”
Finalmente, nãoouviste Jeremias que se lamentava por ordem do Senhor:
  • “Tratámos a Babilónia e não está curada, porque a Babilónia é completamente incurável?”

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Esta é a morada dos príncipes, porque os males, para eles abundantes, tornaram-se insanáveis pelo longo uso (tal como diz Agostinho), visto que da vontade pervertida tem sido gerada a paixão e, enquanto se serve a paixão, ela torna-se um hábito e, enquanto não resistimos ao hábito, ele torna-se necessidade, através destes anéis entrelaçados a cruel servidão tem os homens presos como uma cadeia. Na verdade, quando começais a dedicar-vos aos príncipes, eles tomam-vos com o anzol da honra e das dignidades, depois, pelo longo uso e hábito desta tristeza, ficais presos necessariamente nesta imundície, por fim, este uso afecta-nos de tal forma que Deus disse de vós através de Ezequiel:
  • “A casa de Israel para mim se transformou em metal impuro; todos eles para mim se tornaram bronze e estanho.”
Por este motivo, Jerónimo procura libertar desta cegueira o seu amigo que combatia sob as ordens do imperador, dizendo-lhe estas palavras:
  • “Qualquer rei terreno, não é senhor de toda a terra. Só Cristo é Rei de todo o mundo”; sobre isto se atesta no “Livro do Apocalipse”;
  • “Tinha escrito no traje e na coxa: Rei dos reis e Senhor dos senhores.”

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Segue Este que espalha a glória da vida eterna, a honra do reino do céu, e distribui com liberalidade as riquezas da sua herança aos que lutam pela sua causa.
Aspira por Este, tendo sido desprezadas as riquezas do mundo, os que as elegem não são tratados com justiça, tal como diz a divina sabedoria no “Eclesiástico”. Como é duro ser tomado e detido pelas armadilhas dos príncipes, atesta o profeta, quando diz:
  • “Ele próprio me libertará do laço dos caçadores e da palavra cruel.”
Une na mesma frase ‘palavra cruel’ e ‘laços’, e com razão; na verdade, os príncipes usam os laços, quando iludem os súbditos com falsas esperanças, usam a palavra cruel quando sentem que eles próprios dominaram os infelizes e estes não podem já escapar-se das mãos daqueles; este passo está também no mesmo salmo:
  • “Da seta que voa neste dia, da desgraça que avança nas trevas, do ataque e do demónio do sul, deseja a minha alma libertar-se”, correspondendo, na minha opinião, a ira dos príncipes às setas, às desgraças das trevas, os gritos dos aduladores e dos responsáveis, aos ataques dos demónios do sul, as conspirações dos invejosos e dos inimigos».
In Isabel Allegro de Magalhães, O Diálogo de Duas Jovens Mulheres, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, ISBN 1645-5169.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT