quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Páginas Desconhecidas: O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870. «… decretava, punha e dispunha; e como o primeiro dizia à Europa que Portugal descera às condições do Haiti, o segundo nos confirmava que a empresa de 19 de Maio era perfeitamente uma farsa. Quem alguma vez esperou que a soberania ajudasse e fosse aliada nas dificuldades, deve estar desenganado já».

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«Porque o vulcão ainda não abriu as crateras, nem expeliu a lava, julgam-no inofensivo. Baltasar ceava quando os Medos e os Persas invadiam Babilónia. Carlos X espreguiçava-se no trono na véspera do exílio. Para os governichos constitucionais a questão financeira é o Sphinx mitológico que precipitava quem o afrontasse, sem o vencer. Para o povo o fisco é um vampiro, o avantesma, o lobo cerval, o ogre faminto. Nos serões do lar, por essas terras além de gente rude, que nunca pôs olhos nos sorvedoiros do orçamento, conta-se, como se fora lenda tradicional, que aquele vampiro suga a substância do pobre, e rasga o seio como o pelicano para acrescentar as riquezas do rico. Para lhe iludir a voracidade, até o furto astucioso é tido por arma honrada e cortês.

Produziram estes milagres de civismo as probas e espertas administrações do regime constitucional. Houve já quem calculasse que teriam bastado os dinheiros emparedados no convento de Mafra pelos Césares de sacristia para cobrir Portugal com uma bem urdida teia de estradas. Também o povo somou os capitais devorados improdutivamente pelos constitucionais em trinta e tantos anos de orgia, começamos já a ver o resultado da operação; vê-lo-emos ainda mais terrível, terrível sobretudo para o curador pródigo, que deixou que se apegassem, às mãos suas e dos seus, os capitais que se constituíam o património do tutelado, terrível para a monarquia constitucional que barafusta, entalada nas tenazes dum dilema fatal: a guerra civil ou a bancarrota.
Foi ao encontro destas duas calamidades sociais o actual ministério. Aproximou-as. Não sei se espera, com a confiança insensata dos revolucionários, extirpar o “deficit” às baionetas, ou se, gangrenado pelo separatismo, tenciona espreguiçar-se nas cadeiras do poder, esperando que sobre os outros se desmorone o edifício social a que eles vão arrancando o cimento. Violência e incúria são dois meios, ambos ajustados ao intento de precipitar as catástrofes iminentes. Reformas políticas só uma há que pudesse aproveitar à questão da fazenda. Era a abdicação da monarquia constitucional nas mãos do povo, ou a reivindicação dos direitos do povo, alheados em favor da monarquia constitucional.

Modificações no organismo dos corpos legislativos, reformas eleitorais, regulamentações dos direitos de associação, de petição, de todos por natureza “irregulamentáveis”, são punhados de terra com que um governo usurpador quer cegar os olhos da nação. Todo este alardo de projectos revolucionários há-de descambar em impotência e desconcerto em presença do orçamento. Só um governo verdadeiramente popular, como o governo republicano:
  • pode pedir ao povo e obter dele os sacrifícios indispensáveis para restabelecer o equilíbrio financeiro;
  • só uma ampla descentralização, incompatível com a monarquia, pode diminuir eficazmente os encargos do tesouro;
  • só a iniciativa particular, impossível debaixo da tutória do Constitucionalismo, pode fomentar, com a riqueza pública, o desenvolvimento do capital tributável.
O país precisará sacrificar as instituições políticas vigentes para se poder salvar a si. Se, em vez disso, se abraçar com a monarquia, se se escudar com a Constituição, cairá com a monarquia constitucional. e será subvertido no vórtice dos acontecimentos políticos, que se preparam na Europa.


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Vai um mês que se consumou a revolta; é tempo de perguntarmos o que tem dado. Até agora, um só facto a caracteriza, a chuva de mercês e nomeações. São estadistas todos os parentes do marechal. Que admira? Em Roma não houve cônsul um cavalo?
São ministros, embaixadores, os sobrinhos, os primos, os netos. E os amigos, os compadres, os consócios são marqueses, condes e viscondes. O marechal derrubou o ministério porque o entendia “nefasto”. Mas para o substituir por quê? Não sabia bem. Os ministros eram perniciosos à nação. E quais seriam os escolhidos? O marechal não sabia ainda.
Oh! Os tiros da Ajuda, se não tivessem desgraçadamente vitimado uns infelizes que não sabiam o que faziam, deviam ser respondidos com uma enorme gargalhada! Que revolta é esta que vence, e, vencendo, morre? Que ideia teve? O que quer? Quem são os homens? O marechal, o marechal, o marechal!
O marechal é uma ideia, é um partido, é um sistema… em verdade poderia sê-lo? Um só, o da Força. Mas nem esse! Nunca se viu coisa mais torpe nem mais miserável. Fez-se uma revolta militar, alterou-se a ordem ppor coisa alguma. O marechal está pronto a abdicar, seja em quem for.
Pobre país!

Nós, republicanos, aplaudiríamos, desejaríamos, se, além de republicanos, não fossemos homens e portugueses, que outra revolta rebentasse amanhã, outra e depois outra, porque à terceira, com o ministério, baquearia o trono. Mas não.
  • Porque tais coisas custam sempre a vida aos inocentes, não aos culpados;
  • Porque a liberdade tem de ser ganha com a razão, não com a escopeta;
  • Porque a República assenta sobre a paz, não sobre a guerra;
  • É direito, não a exploração;
  • Convence, não conquista;
  • Abraça, não fuzila;
  • E mentiria a si, se um dia mentisse àquilo que é a fonte donde vem a Justiça, onde os órgãos soberanos não são abrangidos pelas dificuldades.
Vai num mês, e ainda não se formou ministério. O que se tem dado agora, já três ou quatro vezes se deu depois de Janeiro de 1868. Quem quer pastas? Quem quer ser ministro? E há uma dificuldade imensa em fazer ministérios. Dir-se-ia que a abnegação é a primeira qualidade dos nossos homens públicos…
Não se formou ministério.
Mas, não obstante a circular de el-rei, Soulouque lá foi dizer à Europa até que ponto a monarquia descera entre nós; e enquanto o marechal escrevia o “papel”, o ministro “fac-totum”, o Dias Ferreira, decretava, punha e dispunha; e como o primeiro dizia à Europa que Portugal descera às condições do Haiti, o segundo nos confirmava que a empresa de 19 de Maio era perfeitamente uma farsa. Quem alguma vez esperou que a soberania ajudasse para as dificuldades, deve estar desenganado já (230De “A República”, 1870, nº 5.

In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870 e a Ditadura de Saldanha, Seara Nova 1948, Lisboa.

Continua
Cortesia de Seara Nova/JDACT