domingo, 11 de dezembro de 2011

Leituras. Parte XXXIX. A Regra de Quatro. Caldwell e Thomason. «Quando chegaram a San Lorenzo, veio ao encontro dos mensageiros um artesão que sabia o que o lacre continha: um extracto de uma erva venenosa chamada erva-moira, que, quando aplicado nos olhos, dilata as pupilas»

Cortesia de editorialpresenca

«Esta história começou quase cinco séculos antes de eu ter entrado para a faculdade e veio a terminar muito depois da morte do meu pai. Numa noite de Novembro de 1497, dois mensageiros cavalgavam, deixando para trás as sombras do Vaticano para se dirigirem a uma igreja chamada San Lorenzo, fora das muralhas de Roma. O que aconteceu nessa noite mudou os seus destinos e o meu pai acreditava que podia também mudar o seu.
Eu nunca dei muita importância a essas convicções. Um filho é a promessa que o tempo faz a um homem, a garantia que cada pai recebe de que seja o que for a que ele tenha especial apego será um dia considerado uma loucura e que a pessoa que ele mais ama no mundo nunca o irá compreender. Mas o meu pai, um humanista do Renascimento, nunca pôs em causa a possibilidade de renascer. Ele contou tantas vezes a história dos dois mensageiros que, mesmo que eu quisesse, nunca a poderia esquecer. Compreendo agora que ele sentia que ela continha uma lição, uma verdade que haveria finalmente de estabelecer uma ligação entre nós.

Os mensageiros tinham sido enviados a San Lorenzo para entregar a carta de um nobre, carta essa que não deveriam abrir, sob pena de isso lhes custav a vida. A carta fora selada quatro vezes com lacre preto e parecia conter um segredo que mais tarde o meu pai iria passar três décadas a tentar descobrir. Mas nesses tempos as trevas tinham-se abatido sobre Roma; o sentido da honra tinha-a abandonado e não regressara. No tecto da Capela Sistina estava ainda pintado um céu estrelado e as chuvas apocalípticas tinham feito transbordar o Rio Tibre, em cujas margens aparecera, pelo menos assim afirmavam as velhas viúvas, um monstro com corpo de mulher e cabeça de burro.

Cortesia de translittera  

Os dois cavaleiros ambiciosos, Rodrigo e Donato, não haviam dado atenção aos avisos do seu senhor. Derreteram os selos de lacre com uma vela e abriram a carta para conhecerem o seu conteúdo. Antes de partirem para san Lorenzo, voltaram a selar a carta com toda a perfeição, reproduzindo o selo do nobre com tanto rigor que era impossível descobrir a falsificação. Se o seu senhor não fosse um homem tão avisado, os dois correios teriam certamente sobrevivido. Porque não eram os selos que iriam deitar a perder Rodrigo e Donato. Era o lacre forte e negro em que tinham sido gravados.

Quando chegaram a San Lorenzo, veio ao encontro dos mensageiros um artesão que sabia o que o lacre continha: um extracto de uma erva venenosa chamada erva-moira, que, quando aplicado nos olhos, dilata as pupilas. Actualmente o composto é usado em medicina, mas nesses tempos era utilizado pelas mulheres italianas como cosmético porque as pupilas grandes eram consideradas sinal de beleza. Foi essa prática que deu à planta o outro nome por que é conhecida: «mulher bela», ou «beladona». Quando Rodrigo e Donato desfizeram e voltaram a fazer os selos, ficaram expostos ao efeito do fumo do lacre derretido.
Quando chegaram a San Lorenzo, o artesão levou-os até ao pé de um candelabro, junto do altar. Quando viu que as suas pupilas não se contraíam, soube o que é que eles tinham feito. E, apesar de os dois homens se esforçarem por reconhecer o artesão através da sua visão desfocada, este fez o que lhe tinha sido ordenado: pegou na espada e decapitou-os. Era um teste de confiança, dissera o senhor, e os mensageiros tinham reprovado.
O que acontecera a Rodrigo e Donaro, soube-o o meu pai pela leitura de um documento que descobriu pouco tempo antes de morrer. O artesão cobriu os corpos dos homens e arrastou-o s para fora da igreja, enxugando o sangue com panos e farrapos. Colocou as cabeças em dois alforges, um de cada lado da sua montada; quanto aos corpos, atravessou-os em cima dos próprios cavalos de Donato e Rodrigo, que atrelou ao seu. Encontrou a carta no bolso de Donato e queimou-a porque se tratava de um documento forjado e não existia na verdade qualquer destinatário. Depois, antes de partir, ajoelhou-se em penitência em frente da igreja, horrorizado pelo crime que cometera em nome do seu senhor. Aos seus olhos, as seis colunas de San Lorenzo, separadas pelas aberturas entre elas, surgiam como dentes negros e aquele simples artesão admitiu que tremia perante esta visão porque, em criança, sentado no colo das viúvas, tinha ouvido contar que Dante vira o inferno e que o castigo dos maiores pecadores era ser triturado para a eternidade nas mandíbulas de ‘lo 'mperador del doloroso regno’.

Cortesia de editorialpresenca

Talvez o velho São Lourenço tivesse finalmente olhado do seu túmulo e, ao ver as mãos do pobre homem cobertas de sangue, lhe tivesse perdoado. Ou talvez não houvesse perdão possível e, tal como os santos e mártires dos nossos dias, Lourenço mantivesse um silêncio impenetrável. Mais tarde, na noite desse mesmo dia, o artesão, seguindo as ordens do seu senhor, levou os corpos de Rodrigo e Donato a um carniceiro. Provavelmente será melhor nem tentar adivinhar qual foi o destino que tiveram. Só tenho esperanças de que os seus corpos cortados em bocados tenham sido atirados para a rua e recolhidos pelo carro do lixo, ou comidos pelos cães, e não transformados em recheio de empadas. Contudo, para as cabeças dos dois homens, o carniceiro reservava outro destino.

Um padeiro da cidade, homem dominado pelo demónio, comprou-as e nessa noite, antes de fechar a loja, meteu-as no forno. Era hábito nesses tempos as viúvas utilizarem os fornos dos padeiros, depois de escurecer, enquanto as cinzas se mantinham ainda quentes do dia; e foi assim que as mulheres, quando chegaram, fizeram uma enorme gritaria e quase desmaiaram perante o que encontraram.
À primeira vista, parece um bocado pouca sorte ser usado como instrumento para pregar partidas a umas velhas. Mas imagino que Donato e Rodrigo se tornaram muito mais famosos pela forma como morreram do que alguma vez poderiam ter vindo a ser em vida. Isto porque, em qualquer civilização, as viúvas são as guardiãs das memórias e aquelas que encontraram as cabeças no forno do padeiro com certeza nunca mais esqueceram o episódio. Mesmo depois de o padeiro ter confessado o que tinha feito, as viúvas devem ter continuado a contar a história da sua descoberta às crianças de Roma, que, durante toda uma geração, recordavam a lenda das cabeças miraculosas com tanto realismo como a do monstro cuspido pelas cheias do Tibre.
E embora a história dos dois mensageiros tenha eventualmente passado ao esquecimento, uma coisa se mantém para além de qualquer dúvida. O artesão fez bem o seu trabalho. Fosse qual fosse o segredo do seu senhor, ele nunca saiu das paredes de San Lorenzo.
Na manhã a seguir ao assassinato de Donato e Rodrigo, quando os homens das carroças do lixo enchiam os seus barris com os detritos misturados com as vísceras, mal se tinha dado pela morte dos dois homens. A lenta progressão da beleza para a decadência e de novo para a beleza continuou o seu ciclo e, como os dentes da serpente enterrados por Cadmo, o sangue do mal regou a terra romana e trouxe o renascimento. Quando esses cinco séculos passaram e a morte encontrou novo par de mensageiros, estava eu a terminar o meu último ano de universidade em Princeton». In A Regra de Quatro, Ian Caldwell e Dustin Thomason, Editorial Presença, 2004, ISBN 972-23-3263-5.
Cortesia de Editorial Presença/JDACT