segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

José Mattoso. A Escrita da História (teoria e métodos). «O recurso que forçosamente terei de fazer a alguma terminologia e problemática epistemológicas não quer dizer o contrário do que acabo de referir, mas apenas que, apesar de me colocar no plano existencial, não pretendo esquivar um diálogo com os teóricos»

Velho Testamento do Mosteiro de Sta. Cruz, Coimbra
Cortesia de imprensauniversitaria e oleitorsemqualidades

«Eis-me aqui, perante esta assembleia de não historiadores (conferência realizada na FCT da UNL, em 22/10/86), a fazer uma coisa de que me julgaria totalmente incapaz há uns dois ou três anos:
  • falar de questões muito gerais e fundamentalmente teóricas.
Creio que só o sucesso do que tenho escrito ultimamente, mesmo junto de um público não especializado, me poderia dar confiança suficiente para tentar este salto no desconhecido. Quero começar por explicar muito brevemente a minha hesitação. Não tanto porque creia que as minhas angústias vos interessem. Mas porque isso me permitirá definir certos limites daquilo que quero dizer. A minha insegurança resulta de uma certa aversão pessoal por questões teóricas e por noções abstractas, agravadas por uma deficiente preparação filosófica. Interessa-me a prática da lógica pela sua utilidade na produção de um discurso rigoroso e coerente, mas a metafísica deixa-me muitas vezes desorientado, com as suas generalizações demasiado amplas, as suas abstracções que depois hesito em aplicar, e a sua terminologia cheia de equivalências que afinal são menos equivalentes do que parecem. Apesar disso, estou firmemente convencido da necessidade de o historiador se apoiar no terreno conceptual, e de as opções aí tomadas serem explícitas, o que obriga ao esclarecimento prévio de muitas questões teóricas, sobretudo em matérias relacionadas com as ciências humanas, como a Sociologia, a Psicologia ou a Antropologia.

Cortesia de hridayamblogspostcom

De facto, as noções conceptuais fornecidas por outras ciências têm-me sido muitas vezes mais úteis nas minhas investigações do que os modelos propostos anteriormente por colegas da minha especialidade.
Apesar desta convicção, nem sempre estou seguro da coerência dos conceitos que vou buscar a essas ciências, coerência essa que deveria ser buscada, justamente, no terreno filosófico. Os conceitos a que me refiro servem sobretudo para seleccionar, classificar e interpretar o material empírico que a documentação fornece.

Até aqui tem-me parecido suficiente o uso de teses bastante simples, ou mesmo elementares, e que obtêm um certo consenso da parte dos especialistas. Não me tem sido necessário entrar em problemas complexos, que impliquem a tomada de posição por escolas interpretativas divergentes nos diversos ramos do saber. Voltarei mais adiante a este problema, que me parece de uma certa importância, para me referir a questões mais concretas. Para já, pretendo sobretudo associar-me aos historiadores profissionais, e à sua aversão para com a Filosofia da História, embora, em alguns casos mais especiais, fortemente interessados por questões de método e mesmo de epistemologia. Ora bem, o interesse suscitado pelos meus livros recentes como que me impõe a justificação das minhas posições, directa ou indirectamente solicitada pelo público.

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Já não posso limitar-me a soluções um tanto instintivas. No entanto, a minha aversão aos problemas teóricos ou propriamente filosóficos, leva-me, mais uma vez, a esquivar, na medida do possível, as justificações exclusivamente racionais para partir de uma atitude existencial, e que considero profundamente pessoal. Ou seja, o que queria aqui dizer hoje não é a definição de uma posição racional, teoricamente justificável, mas a explicitação consciente de uma atitude pessoal perante a História, que não quero propor como paradigma. O recurso que forçosamente terei de fazer a alguma terminologia e problemática epistemológicas não quer dizer o contrário do que acabo de referir, mas apenas que, apesar de me colocar no plano existencial, não pretendo esquivar um diálogo com os teóricos. Espero, pelo contrário, que com a sua ajuda possa eventualmente, corrigir o que haja de incorrecto e de desastrado nas minhas explicações. Para não me perder no meu percurso, vou procurar referir-me a três momentos da elaboração do discurso histórico, que são, primeiro, o exame do passado através das suas marcas, depois a representação mental que desse exame resulta e por fim a produção de um texto escrito ou oral que permite comunicar com outrem». In José Mattoso, A Escrita da História (teoria e métodos), Imprensa Universitária, editorial Estampa, Lisboa, 1988.

Cortesia de Imprensa Universitária/JDACT