sábado, 12 de novembro de 2011

Pedro Eiras. Ruy Belo, a habitação do mundo. «De muitas delas de resto falei, não sei talvez eu me possa enganar, foram tantas as vezes que me enganei mas por trás da mulher da terra e do mar…»

Cortesia de sputnikmmx

Surpreender o Lugar
Há outra forma de justeza, que não passa pela medição de distâncias. Nem pela habitação propriamente dita (o que é, insisto, uma tautologia) - mas pela transgressão pura da habitação: o salto. Ou seja: em Ruy Belo, o homem que habita a terra habita além da terra. Em “Homem de Palavra[s]”:

Amei a mulher amei a terra amei o mar
amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar
De muitas delas de resto falei
Não sei talvez eu me possa enganar
foram tantas as vezes que me enganei
mas por trás da mulher da terra e do mar
pareceu-me ver sempre outra coisa talvez o senhor
É esse o seu nome e nele não cabe temor
Mas depois deste sonho sou obrigado a cantar:
Eis que o senhor está neste lugar
[…]
Aqui - mulher terra mar -
Aqui só pode ser a casa de deus

Acompanha-se a “heurese”, passo a passo, no poema: a evidência em «Amei a mulher amei a terra amei o mar», a transcendência - cega - quando «por trás da mulher da terra e do mar / pareceu-me ver sempre outra coisa talvez o senhor», a síntese justa (justeza, justiça?) de «Aqui - mulher terra mar - / Aqui só pode ser a casa de deus». Resposta humilde: «deus», com minúscula, é a terra, mesmo se é preciso ver «por trás [...] da terra» - cegar? O poema não é dialéctico, se se resolve nesse “por trás de”, que interrompe fulgurantemente a indagação, e mesmo se esse lugar de transcendência é suspeito de engano («foram tantas as vezes que me enganei»).

Há outros exemplos, incontáveis.
[…]

Simone Weil, quase no início de “O Enraizamento”:
  • «Se mantivermos sempre presente no espírito o pensamento de uma ordem humana verdadeira [...] estaremos na situação de um homem que anda na noite, sem guia, mas pensando sem descanso na direcção que quer seguir. Para um tal viajante, existe uma grande esperança».
In Pedro Eiras, Ruy Belo: a habitação do mundo, Colóquio e Letras.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT