sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Painel de São Vicente de Fora. Nuno Gonçalves: Parte VI. Painel dos Cavaleiros (4). Uma obra-prima da pintura portuguesa do século XV, pintada a óleo entre 1470 e 1480. «As feições da personagem, no entanto, são tão europeias como as das restantes, e não parece lógico meter um mouro desconhecido num painel de figuras importantes e presumivelmente reconhecíveis pelos seus contemporâneos»

Cortesia de paineis

Painel dos Cavaleiros
Parte 4

Uma Espada Torcida
«Se uma cruz partida e um cinto desalinhado não chegarem para transformar o cavaleiro roxo na mais desfavorecida figura dos painéis, o pomo da sua espada pode talvez contribuir para essa conclusão. Em nenhuma das numerosas espadas que figuram nos painéis se pode ver deformação semelhante: o pomo da espada que a mais maltratada figura do políptico segura, está pura e simplesmente torcido, como se tivesse rodado sobre o eixo do seu punho; não se situa no plano definido pelas guardas, e uma tal distorção não é explicável por deficiência de perspectiva ou insipiência do pintor, como por vezes se pretende (compare-se a espada torcida com as restantes para apreciar a diferença entre elas).

Uma cruz, um cinto, uma espada, imperfeito tudo o que diz respeito ao cavaleiro roxo? Será a acumulação de coincidências «fotográficas» admissível? Talvez o cavaleiro, a caminho da oficina do pintor, tenha caído do cavalo abaixo e avariado todo o seu equipamento, mas os estudiosos recusam o simples registo e continuam a rezar a S. Vicente. O cavaleiro roxo, porém, não está menos esgadanhado e não deve ser por acaso...

Cortesia de paineis

Um Capacete Inexistente
A mais estranha peça de equipamento militar dos painéis é o capacete usado pela figura de barba e longa cabeleira, uma vez que não se assemelha a nenhum dos modelos que se usavam na época em que foi pintado. Pode apresentar alguma semelhança com um tipo de capacete simples usado por mouros na iconografia ocidental, e conjugado com o aspecto «diferente» da figura a que pertence, já ocasionou a identificação desta como uma «figura mourisca» ou um «guerreiro azenegue», sendo frequentes as conotações norte-africanas da mesma.

As feições da personagem, no entanto, são tão europeias como as das restantes, e não parece lógico meter um mouro desconhecido num painel de figuras importantes e presumivelmente reconhecíveis pelos seus contemporâneos. O misterioso cavaleiro usa sobre uma camisa branca um perponto que parece semelhante aos de outras figuras, com dois fios reunindo os lados da sua gola negra. Sob o perponto, enverga uma cota de malha, e nada mais se pode dizer sobre a sua indumentária que, a avaliar pelas partes visíveis, não parece diferir das restantes. O capacete é pois o seu único elemento deslocado ou simbólico.
Uma vez que as restantes figuras principais são individualizadas em extremo por objectos que lhes são peculiares, também aqui poderemos estar em presença de um objecto emblemático conotado simbolicamente com a figura. Apesar da simplicidade do seu formato apresenta algumas características que devem ser referidas: possui um rebordo dourado que mostra não se tratar de um símbolo desprovido de valor, e reflecte uma mancha luminosa com um formato bem definido. Tratando-se de um provável objecto simbólico imaginado pelo pintor, ocorre perguntar por que razão teria ele representado o reflexo com um formato tão peculiar. O exame próximo revela que o rebordo dourado do capacete mostra várias indentações, duas das quais correspondem aos dois extremos da mancha luminosa que parece assim acompanhar as depressões da superfície metálica. O eixo central da mancha que a divide em dois, porém, não corresponde a nenhuma indentação visível no rebordo, parecendo antes o reflexo de uma divisão central numa hipotética janela aberta sobre a luz do dia e reflectida no capacete. A ideia de fazer corresponder a origem luminosa com uma janela de coluna central e dupla arcada, esteve já na origem de uma identificação com a janela da Torre de Arzila, que sobrevive até aos nossos dias. Adiante veremos outra hipótese, limitando-nos por agora, a registar um capacete simbólico, com uma orla dourada e uma mancha luminosa em forma de dupla arcada, como a letra «M» numa representação gótica.

Cortesia de paineis

Uma Figura a Mais
O número de figuras principais que se destacam do friso que ocupa o último plano e dá continuidade horizontal ao conjunto, é o seguinte (da esq. para a dir.): 3, 3, 6, 6, 4, 3. Seis para cada um dos painéis maiores e três para cada menor, com excepção do painel dos Cavaleiros. Note-se que se pode observar a partir dos desenhos preparatórios descobertos sob a pintura que, no painel dos Pescadores, as três figuras que viriam a ser reunidas pela rede ocupavam posições mais baixas, e a mais recuada das três parecia – através até do grau de elaboração e tempo do seu esboço – apontada a um estatuto posicional equivalente ao das restantes figuras principais, como sucede com a quarta personagem em destaque no painel dos Cavaleiros, entre o trio mais adiantado e o friso de quatro figurantes secundários. A versão final – com os dois primeiros «enredados» em posições mais elevadas, e o terceiro completamente integrado no friso dos figurantes – assegurou que o painel dos Pescadores viesse a ter apenas três figuras principais, como o dos Frades e o da Relíquia.
A forma final do painel dos Pescadores assegura assim que apenas o painel dos Cavaleiros fique com um primeiro plano de quatro figuras, e a intenção detectável é a de colocar uma delas em excesso. A pose e aspecto singulares do quarto cavaleiro parecem reforçar esta interpretação: ao contrário dos outros, volta-se para fora e não para dentro, e o seu cabelo, barba bífida e capacete, conferem-lhe efectivamente um aspecto diferente, realçado pelo facto de envergar uma indumentária negra, enquanto os restantes estão conotados com as três cores vivas – verde, vermelho e roxo – que se repetem ao longo dos painéis.

Uma figura principal em excesso no painel dos Cavaleiros, portanto, cujo carácter excepcional é confirmado pelas pesquisas e posicionamentos exploratórios iniciais que o pintor procurou noutro painel, até encontrar a solução que considerou satisfatória e se encontra visível.

Cortesia de paineis

NOTA: Note-se igualmente a elaborada procura de uma dupla simetria final subtil que equiparasse o painel dos Pescadores, ora ao painel dos Cavaleiros através da altura das colocações e de um quarto elemento principal desintegrado do friso de figurantes secundários, ora ao da Relíquia através das atitudes das três figuras mais baixas. Note-se ainda que existe uma dupla simetria análoga entre o painel dos Frades e os dois painéis menores do lado oposto, por um lado através do equilíbrio entre o espaço negro e a caixa vazia, e por outro através da tensão entre o mesmo espaço negro e o cavaleiro da mesma cor. A intenção de criar duas possibilidades rivais de simetria entre os quatro painéis menores é visível em todos os tempos de elaboração e os seus indícios são tantos que se torna difícil esgotá-los sem esgotar a paciência do leitor: observe-se, por exemplo, e regressando ao esboço subjacente do painel dos Pescadores para melhor sublinharmos o que ficou sugerido, a forma como a figura do esboço inicial simetricamente correspondente à do cavaleiro de vermelho do painel dos Cavaleiros, adoptava uma atitude corporal que poderia ser equiparada, por um lado, à do referido cavaleiro, ambas «voltadas para dentro») mas, por outro, à do homem que transporta a caixa de madeira, ambas «a olhar para fora».
In Painéis de São Vicente de Fora.

Cortesia de Painéis/JDACT