terça-feira, 15 de novembro de 2011

Luís Manuel de Araújo. Estudos sobre erotismo no Antigo Egipto: «Tanto Ísis como Hathor viram os seus cultos, ou pelo menos as suas figurações iconográficas, disseminados para lá das fronteiras do Egipto. A primeira tem vestígios de santuários seus em vários pontos do Império Romano, da Germânia e Bretanha à Península Ibérica, e a segunda foi conhecida, por via púnica, também na Península Ibérica»

Dançarina acrobática do Império Novo. Museu de Turim
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«Os textos que antevêem uma eternidade de folguedos não dispensam o belo arvoredo, e a casa de sonho que os poemas líricos descrevem inclui sempre um jardim bem tratado, onde não faltam as flores, muitas flores. Um dos votos que o justificado mais formula para a vida do outro mundo é que o Nilo lhe continue eternamente a proporcionar toda a exuberante vegetação, uma vegetação que é conivente nos encontros de amor, e que o defunto se possa refrescar à sombra de um sicômoro por si mesmo plantado.
Se o Além era atempadamente preparado, a vida terrena deveria ser, para quem naturalmente o podia fazer, consumida em plenitude. Havia que gozar os dias antes da grande jornada rumo ao outro mundo, e os designados «cantos de harpista» bem exortam à fruição do bem-estar. Recordemos um deles:

«As gerações vão passando, outras ficam,
e assim é desde o tempo dos antepassados.
Os deuses de antigamente repousam nas suas pirâmides
e também os ilustres nobres
estão sepultados nos seus túmulos.
Outros construíram túmulos
mas esses sítios desapareceram.
Que é feito deles?
Ouvi os ensinamentos de Imhotep e de Djedefthor,
cujas palavras são citadas duradouramente.
Onde estão as suas moradas?
As suas paredes ruíram, os seus lugares desapareceram,
como se nunca tivessem existido.
Ninguém vem do Além para dizer o que é feito deles,
para contar as suas necessidades,
para sossegar o nosso coração,
até partirmos para o lugar onde eles estão.
Por isso alegra o teu coração, esquece isso e aproveita.
Segue os teus desejos enquanto viveres!
Põe mirra na tua cabeça e veste-te de fino linho,
unge-te com óleos feitos para o deus.
Aumenta o teu bem-estar,
não deixes o teu coração desfalecer!
Segue o teu coração e a tua felicidade.
Enquanto viveres na terra, faz o que o teu coração deseja!
Quando chegar o teu dia das lamentações fúnebres,
Osíris, o do coração cansado, não escutará os lamentos,
o choro não livra ninguém do túmulo!
Goza, faz um dia feliz, não tenhas problemas!
Repara, nunca ninguém levou os seus bens consigo.
Repara, nenhum dos que partiram regressou».


O faraó Ramsés acariciando uma jovem concubina
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Se é verdade que a crença na eternidade e no ditoso e florescente mundo do Além gerou um inequívoco e característico culto dos mortos, onde os rituais inculcavam esperançosamente a confiança no devir, também existem vários textos que lamentam a chegada da morte e transmitem com realismo a incerteza, porventura a descrença, na vida futura. Em todo o caso, para que o bem-estar e a abundância não faltassem no reino de Osíris, recheavam--se as paredes dos túmulos com imagens propiciatórias destinadas a «fazer um dia feliz» (ir heru nefer) para todo o sempre.
Há, outrossim, um erotismo demiúrgico presente na cosmogonia forjada pelo influente clero de Iunu (Heliópolis), segundo o qual o deus Atum, que estava sozinho no meio do caos silencioso e primordial, teria criado o mundo e os deuses a partir da sua própria masturbação. Também outros deuses se apresentam com uma exuberante potência sexual, deles se destacando Amon, Ré (ou a divindade sincrética Amon-Ré), Khnum, Bes e o imponente Min, de f… permanentemente erecto. Segundo a cosmogonia inventada pelo poderoso clero de Uaset (Tebas, hoje Lucsor) o deus Amon, que no momento criacional estava, como Atum, só no mundo caótico e desabitado, teve de fazer ao mesmo tempo de v…. e de f…: de resto, naquele mítico tempo primígeno, como diz um conhecido hino amoniano do Império Novo, «ainda não havia v….».

Duas pesadas figuras nilóticas de fecundidade
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Há também um sintomático erotismo nas representações ideológicas e iconográficas da meiga e felina Bastet, a deusa gata venerada especialmente em Bubastis e Sais, e na deusa vaca Hathor, ligada ao amor, à música, à embriaguês e à protecção da maternidade, sendo ainda por excelência a divindade amamentadora do rei. Bastet podia por vezes revelar um carácter agressivo, no entanto os seus predicados amorosos eram mais solicitados: as festas básticas em Bubastis celebravam a popular deusa gata como senhora da música, da dança e dos folguedos, dando então origem, como relatou Heródoto, a grandes bebedeiras e licenciosidades. A estas duas deusas que exaltavam a feminilidade há que juntar a preponderante e muito venerada Ísis, excelso modelo de esposa e mãe, numa civilização equilibrada onde a mulher era alvo de grande respeito enquanto mãe e enquanto esposa. Tanto Ísis como Hathor viram os seus cultos (ou pelo menos as suas figurações iconográficas) disseminados para lá das fronteiras do Egipto: a primeira tem vestígios de santuários seus em vários pontos do Império Romano (da Germânia e Bretanha à Península Ibérica), e a segunda foi conhecida, por via púnica, também na Península Ibérica, em representações sincréticas de Ísis/Hathor.

Que a mulher desfrutava no Egipto de uma posição social apreciável em comparação com outras civilizações coevas não se duvide: são as imagens que a arte nos legou a corroborar tal situação. Já nas estátuas do Império Antigo é a mulher, muitas vezes representada com o mesmo tamanho do homem, a abraçar o esposo, passando-lhe amorosamente o braço pelas costas ou pelo ombro. O defunto compraz-se em ser representado para a eternidade, nos baixos-relevos do túmulo ou na estatuária, com a sua esposa, por vezes com os filhos, demonstrando a grande união da estável família monogâmica». In Luís Manuel de Araújo, Estudos sobre erotismo no Antigo Egipto, Edições Colibri, Temas Pré-Clássicos, 2000, ISBN-972-8285-05-0.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT