domingo, 20 de novembro de 2011

Bartolomeu Dias: «O “Capitão do Fim”. Não muito longe do estrado, um numeroso grupo de damas e gentis-homens jogava um jogo de cartas com trovas da invenção de Garcia de Resende, o escrivão da puridade d'el-rei e poeta nas horas vagas, muito ao gosto da corte…»

Cortesia de vidaslusofonas

«As paredes da sala principal da casa onde pousava D. João II tinham sido revestidas, para a audiência, de ricos panos de seda e de rás. Sobre um alto estrado forrado de veludo vermelho, com dossel de brocado carmesim, sentados de cada lado da cadeira real ainda vazia, a sereníssima rainha D. Leonor e o príncipe presidiam aos jogos e danças com que os cortesãos entretinham a espera da embaixada. De pé, um pouco atrás da rainha, viu o duque D. Manuel a quem el-rei concedera os bens e títulos de duque de Viseu e de Beja, do primogénito Diogo, a fim de apaziguar a esposa e manter satisfeito esse cunhado ambicioso, dissimulado e escorregadio como uma enguia.

Ao chegar da sua ultima viagem, achara D. Afonso muito formoso e espigado para os seus quase doze anos de idade, porém mais inclinado às coisas do avô D. Afonso V que às de seu pai, como este mesmo reconhecia. “É mais brando e macio do que cumpre a um príncipe herdeiro de um grande trono”, ouvira-o dizer um dia, vendo o filho trocar o jogo de canas pelo sarau de poesia. Desta vez, a função a que assistia seria seguramente ao gosto do moço príncipe.
Seu pai ordenara a todos os que tinham logrado permissão de assistir ao recebimento das embaixadas para se apresentarem em trajo de gala e com os seus melhores atavios, no que fora prontamente obedecido, pois, dada a singular austeridade de D. João e o seu defeso de luxos e ostentações, escasseavam as ocasiões para os cortesãos alardearem a sua opulência e supremacia e ninguém iria desperdiçar tão raro ensejo. Assim, os nobres e as suas damas luziam com soberba galanteria as sedas e brocados roçagantes, cheios de cor e de bordados, adornados com as suas mais belas jóias de oiro e pedraria.

Cortesia de esquilo

De igual modo, os oficiais do serviço de Sua Alteza trajavam de veludo e os seus moços e criados vestiam as librés de gala, desde o mordomo-mor, que dirigia as cerimónias, ao porteiro-mor, com a sua hoste de porteiros de maça e reis d'armas, assim como o vedor-mor, com os vedores da Fazenda, os dois mestres-sala ou ainda a capela real com todos os seus tangedores e cantores, além de inúmeros arautos e passavantes com trombetas, tambores, charamelas e sacabuxas, todos engalanados.

NOTA: Charamela era um instrumento musical com uma palheta metida numa caixa que se soprava com força, como nas buzinas. A sacabuxa assemelhava-se a uma trompa.

Não muito longe do estrado, um numeroso grupo de damas e gentis-homens jogava um jogo de cartas com trovas da invenção de Garcia de Resende, o escrivão da puridade d'el-rei e poeta nas horas vagas, muito ao gosto da corte, como lhe era dado ver pela grande animação dos jogadores, com os risos e malícias que ecoavam pela sala, de mistura com algumas zangas e amuos dos perdedores. Por desfastio, juntou-se aos espectadores que aplaudiam e vaiavam os jogadores.
Havia quarenta e oito cartas, cada uma com sua trova escrita, metade de mulheres e metade de homens, sendo doze trovas de louvor e doze de deslouvor para cada grupo. Bem baralhadas as cartas, o jogador tirava uma em nome de certa dama ou de gentil-homem e lia a trova em voz alta em sendo de louvor, aplaudia-se o visado, em sendo de escárnio, todos apupavam e se riam do desafortunado ou da desventurada. Ouviu o nome de um seu conhecido e prestou atenção à leitura da maliciosa D. Joana de Mendonça que proclamava:

Vossos dias já passaram,
logo pareceis passado,
sois das damas enjeitado
e nunca vos enjeitaram.

Cortesia de jcabral

Não pôde deixar de sorrir, pois, pelo menos naquele caso, a trova de escárnio acertara em cheio, visto o fidalgo ser bem servido de anos, muito emproado e amador confesso de damas a quem muito importunava e que dele zombavam sem dó nem piedade:

Sois mais pai que servidor,
sois mais avô que galante,
por isso des hoje avante
deixai as damas, senhor.

Ainda os risos não tinham esmorecido e já o estribeiro-mor, Francisco Homem, lia a sua trova a uma dama, cujo nome não ouvira, de novo absorto em outros pensamentos, com o olhar preso no estrado onde se sentavam as três pessoas mais chegadas a el-rei, o seu filho e herdeiro, a mulher e o cunhado e, no entanto, os dois últimos haveriam de ser os seus maiores inimigos, dissimulados e feros, trabalhando à sombra dos parentes de Castela, não desperdiçando a mínima ocasião de se opor aos seus desígnios». In Navegador da Passagem, Deana Barroqueiro, Porto Editora, 2008.

Continua
Wikipédia/Deana Barroqueiro/Porto Editora/JDACT