quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O Livro de Cale. Carlos Cordeiro: Parte 4. «Bernardo contornou a casa, tentando ver se se tratava de um local seguro. Pretendia deixar “Lucus” na cavalariça. Deteve-se junto de uma abertura, ladeada por dois pilares de madeira. Entrou num telheiro, apeou-se e amarrou o cavalo a uma trave. Alguns movimentos e relinchos abafados fizeram-no olhar para as outras montadas, apenas percebidas como silhuetas de corcéis árabes»

Cortesia de peuropaamerica

Recontro em Mofatra
«O céu descobrira-se momentaneamente, deixando o luar incidir numa velha ponte romana, aparentemente reconstruída havia pouco. A claridade do lugarejo tornara-se mais forte, à medida que “Lucus” se aproximava. Entre as raras tochas acesas, destacava-se uma no que parecia uma habitação antiga, mas sólida. Foi para lá que Bernardo voltou a montada, afagando-lhe o dorso, na tentativa de o acalmar e de aliviar a sua dor. Porém, os afagos não lhe revelaram a ferida que rompia o bojo do cavalo.
O monge também estava ferido. Sentia agora a dor. Talvez as ramagens ou as rédeas o tivessem fustigado. Todavia, os cortes eram demasiado finos e perfeitos, como que infligidos por gumes afiados. Contudo, a chuva, que, entretanto, voltara a cair e que lhe escorria pelo corpo, aliviava-lhe o sofrimento.
Cautelosamente, Bernardo aproximou-se da aldeia. Com excepção de uma ou outra tocha, onde bruxuleavam ténues chamas, pouco mais estava iluminado do que uns passos em redor. Sossego, a não ser uma vozearia de chusma, abafada e indefinível, que envolvia o ambiente. Devagar, mas com firmeza, as patas de “Lucus” iam esmagando, com um bater surdo e ritmado, os dejectos que se arrastavam na rua principal.

Atento, Bernardo procurava a origem da assuada. Prosseguiu, acalmando o cavalo que continuava a dar mostras de cansaço e dor. O barulho tornava-se mais audível, à medida que “Lucus” se aproximava da mansão. Bernardo já sonhava descansar, abrigado. Pouco chovia.

Cortesia de wikipedia

«Estalagem», lia-se numa tabuleta que balouçava, fustigada pelo vento. A velha tabuleta, que parecia não se aguentar ali por muito mais tempo, abanava com um ruído lúgubre. Sendo pobre, a casa era uma das maiores e melhores do lugar. O granito que, apesar de antigo, parecia firme, sustentava um telhado de madeira alto e largo, que cobria os dois andares, sendo o último, mais recuado.

Bernardo contornou a casa, tentando ver se se tratava de um local seguro. Pretendia deixar “Lucus” na cavalariça. Deteve-se junto de uma abertura, ladeada por dois pilares de madeira. Entrou num telheiro, apeou-se e amarrou o cavalo a uma trave. Alguns movimentos e relinchos abafados fizeram-no olhar para as outras montadas, apenas percebidas como silhuetas de corcéis árabes. Com movimentos demorados e rigorosos, Bernardo tirou as luvas, sacudiu a capa, pegou no bornal e olhou novamente na direcção dos relinchos. Os animais estavam agitados e fatigados.
Surgindo do nada, ao lado de Bernardo, uma voz grave e rouca vociferou:
- Quem está aí? Mostrai-vos ou a vossa vida termina agora!
O monge voltou-se e respondeu, para sossegar o homem:
- Nada receeis! É gente de Deus!
De súbito, uma ponta de lança gelou-lhe o pescoço, apertando-lhe a jugular.
- De que duvidais? - atirou Bernardo, seca mas prudentemente, olhando o homem pelo canto do olho, identificando-lhe o físico e possível ameaça.
Fernando, homem atarracado e corpulento, mostrou-se. Lento e pesadão, mas com um olhar vivo na face bochechuda, insistiu:
- Esta noite não é de boa jornada e quem dela surge ou é salteador ou assaltado!
-Tendes razão, homem de Deus! Quem é quem, agora? - perguntou ironicamente Bernardo, a avaliar a postura do oponente.

Cortesia de wikipedia

O estalajadeiro ficou confuso. Mudou de lugar, tentando garantir uma melhor posição de ataque. Bernardo perdeu a esperança de convencer o homem e deitou as mãos à lança. Atónito, Fernando viu-se sem poder atacar, ao verificar que a lança se havia ancorado no poderoso braço de Bernardo. Este olhava-o nos olhos, ao mesmo tempo que lhe encostava a espada ao pescoço. Fernando debateu-se, por instantes. Depois, arregalou os olhos e franziu a testa, estupefacto, ao identificar o cunho da espada do oponente.
Com a voz tolhida, esforçou-se:
- Senh... Senhor! Desculpai-me... pelo santo nome de Deus - desculpou-se, ainda gago de temor. - Não vos reconheci o prestígio na figura. Castigai-me ou desculpai-me, senhor de...

-Nem mais uma palavra! Calai-vos, pois não quero o meu nome pronunciado nem a minha presença assinalada - disse-lhe Bernardo, agastado, libertando lentamente o homem, surpreendido, também, por ter sido reconhecido tão rapidamente.
Fernando afastou-se, deferente. Encostou a lança à parede e olhou cabisbaixo para Bernardo, que exigiu, peremptório:
- O vosso nome! Que sabeis de mim?
- Fernando… nobre senhor - hesitou o estalajadeiro. – Fernando Dias, tal como meu pai... honrado por ter combatido ao lado do conde Nuno. A minha consideração a quem conserva o seu cunho...
- Estou elucidado, Fernando! A minha saudação a quem descende de tão digno companheiro de meu pai - respondeu Bernardo para, depois, reclamar um aposento ao estalajadeiro.
(…)
Fernando não conseguiu terminar a frase. Com um estrondo grave e forte, um corpo embateu no chão e rebolou contra a parede. Meio atordoado pela queda e ainda lívido, um homem apessoado, bem constituído e ricamente vestido ficou atónito, ao olhar para as duas figuras que o encaravam. Tentou articular algumas palavras, mas soltou apenas vagos lamentos». In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, Publicações Europa-América 2010, edição nº 103583/9344, A Fábrica das Letras, ISBN 978-972-1-06140-8.

Cortesia de Publicações Europa-América/JDACT