domingo, 25 de setembro de 2011

José Mattoso. As Três Faces de Afonso Henriques. «… iluminando ora a faceta da santidade e de instrumento da providência divina do nosso primeiro rei ora a faceta do guerreiro ousado e indomável ou do prudente estratego, ora a sua capacidade de hábil político ou de genial herói»

Cortesia de araduca

«Torquato de Sousa Soares, que desenvolveu uma persistente carreira de investigador norteado pelo propósito de esclarecer as origens da nacionalidade, e que procurou, portanto, dar um fundamento objectivo ao epíteto de «fundador» que a tradição atribui a Afonso Henriques, iniciava com as seguintes palavras uma conferência proferida em 1979 na Sociedade Histórica da Independência de Portugal:
  • «não é férula guerreira que avulta no pensamento e na actividade do nosso primeiro monarca: nem foi seu timbre lutar indiscriminadamente com a única preocupação de ampliar o território nacional. Realmente, o que na sua personalidade sobressai e o impõe aos vindouros é a craveira ímpar de político clarividente, diria, talvez melhor, de rei, a quem cumpria visionar, na sua integridade, todos os problemas de que, afinal, dependia a construção viável do Estado português, com problemas esses que não eram apenas, nem sequer principalmente, de ordem militar, apesar da extraordinária relevância destes ao longo de todo o reinado».
E terminava a mesma conferência como se segue:
  • «Depois de estudar este reinado com espírito isento, embora nem sempre justo, Herculano […] presta a D. Afonso Henriques a derradeira homenagem, ao invocar a gratidão nacional que o aureola, fazendo dele o símbolo vivo da Pátria, que nos aponta o dever de a defendermos e prestigiarmos sempre, aonde flutue a sacrossanta bandeira das Quinas. E a voz de Herculano ecoa ainda no coração de todos os verdadeiros portugueses».

Cortesia de lereverwordpress

Dois anos antes, em 1977, Joaquim V. Serrão publicava o primeiro volume da sua difundida “História de Portugal” e escrevia, ao terminar a narrativa do reinado de Afonso Henriques:
  • «Nada mais se pode acrescentar a tão marcante elogio, porque a obra responde pela sua actuação histórica. Bastaria verificar o mapa português em 1185 para reconhecer o esforço que o infante tornado rei soube despender no inicial travejamento da Pátria. A figura de D. Afonso Henriques tomou assim uma estatura colossal perante a história, como edificador de um Estado que fez da Reconquista Cristã a sua primeira vocação em busca da mais ampla autonomia política».
Estes exemplos da maneira como é interpretada a personalidade do primeiro rei de Portugal tornam extremamente interessante ver como se formou em época mais próxima dos acontecimentos o imaginário colectivo acerca da sua personalidade e da sua função. Ao examinar, de maneira muito simples, os primeiros testemunhos acerca dele, não me anima, é claro, nenhum sentimento iconoclasta. Não me interessa sequer medir a estatura real de Afonso Henriques para saber se era ou não um génio, nem demonstrar cinicamente que esteve longe de ser um santo. Deixarei aos construtores e destrutores de mitos essa tarefa, e aos políticos o cuidado de averiguarem a vantagem ou desvantagem de manterem esta ou qualquer outra convicção colectiva, embora me pareça que os símbolos e mitos têm uma eficácia insubstituível, como representações mentais de vínculos invisíveis, e que a sua carga é tanto mais emotiva, e portanto tanto mais vinculadora, quanto maior é a coesão da colectividade que os cria, seja ou não artificial e voluntária a sua origem. Não compete, porém, ao historiador contribuir para a formação dos mitos e muito menos tentar dar-lhes uma aparência de realidade.

Cortesia de xicoinforma

Independentemente, portanto, deste problema é curioso e instrutivo verificar que as ideias dos contemporâneos de Afonso Henriques acerca dele estavam longe de ser unânimes e que nem sempre os animava uma admiração incondicional; que as principais opiniões a tal respeito se mantiveram persistentemente nos grupos sociais que as criaram, permaneceram durante muitas gerações depois da sua morte e ainda corriam, embora sob formas evoluídas, durante os séculos XIV e XV. Só no século XVI se deixaram morrer ou se procuraram enterrar certas tradições que ficaram para sempre esquecidas em textos considerados, desde então, verdadeiramente bizarros, conhecidos apenas dos eruditos e mencionados por eles apenas para lhes colocarem o rótulo cómodo e desprestigiante de lendas absurdas, como se bastasse a sua antiguidade para se corromperem espontaneamente, sem que interessasse averiguar o seu sentido, mesmo admitindo a falsidade dos factos nelas narrados.

Duarte Galvão considerou ainda o episódio do «bispo negro» suficientemente credível para o incluir na sua “Crónica del-rei D. Afonso Henriques". Mas em 1726 pareceu à Inquisição (maldita, jdact) que os capítulos 21 a 24 da mesma “Crónica”, reproduziam, em grande parte, o texto da “Gesta” eram escandalosos e tão ofensivos para a autoridade régia que não permitiu que se publicassem. Em 1952, o preconceito historiográfico contra o mesmo episódio era tão grande que o padre António da Silva Tarouca, ao preparar para a Academia da História a sua edição da “Crónica de 1419”, relegou para apêndice os capítulos 15 a 18, considerando-os apócrifos, apesar de estarem contidos nos vários manuscritos que a reproduzem, e em Duarte Galvão, que a utilizou como fonte principal.

Com efeito, a historiografia «oficial» difundiu apenas uma dessas correntes narrativas, sob formas mais ou menos exaltadas, mas sempre altamente elogiosas, iluminando ora a faceta da santidade e de instrumento da providência divina do nosso primeiro rei ora a faceta do guerreiro ousado e indomável ou do prudente estratego, ora a sua capacidade de hábil político ou de genial herói. Até hoje, como vimos (31)». In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa, ISSN 0871-7486.

Cortesia de Edições Cosmos/JDACT