domingo, 18 de setembro de 2011

Carlos Montalto de Jesus. Macau Histórico. Edição de 1926. Parte I. «… finalmente ter a oportunidade de ler na sua própria língua e de julgar uma «edição maldita» cujos exemplares, quando foi posta à venda em Macau, foram apreendidos e confiscados aos que já os possuíam para serem destruídos pelo fogo em auto-de-fé»

Cortesia de foriente

Macau Histórico
Em jeito de Introdução
A glória e o martírio de Montalto de Jesus

«Reveste-se de grande importância e significado pois que constitui como que uma reabilitação, embora tardia, do seu autor, este lançamento agora feito pela primeira vez, de uma tradução portuguesa da obra magna do malogrado e mal compreendido escritor e historiador macaense nado e educado em Hong-Kong, Carlos Augusto Montalto de Jesus, através da sua 2ª edição, revista e aumentada, “Historic Macao. International Traits in China Old and New”, publicada em Macau em 1926.

Os portugueses vão ter a oportunidade de ler na sua própria língua e de julgar uma «edição maldita» cujos exemplares, quando foi posta à venda em Macau, foram apreendidos e confiscados aos que já os possuíam para serem destruídos pelo fogo em auto-de-fé.

O seu autor caiu em desgraça. Isto aconteceu em Macau nos idos de 1926, ano em que em Portugal, foi posto fim à I República, substituída pela Ditadura Militar. Era o «28 de Maio». Poucos meses depois pobre e desolado por lhe ter sido negada a justiça que solicitara aos tribunais, Montalto de Jesus morria, em Março de 1927, em Hong-Kong, numa casa de caridade que o tinha acolhido.

Poucos são os exemplares desta 2.ª edição «maldita» que escaparam à fogueira. Praticamente só os que foram enviados pelo Autor aos seus patrícios e amigos em Hong-Kong e Xangai e os escondidos no fundo das velhas arcas de antigas famílias macaenses, que os conservaram qual tesouro.
Até à sua recente reedição em 1984, pela Oxford University Press, de Hong-Kong, escassos foram aqueles que tiveram o ensejo de conhecer os três últimos capítulos acrescentados à edição original, actualizando a obra com a sua vivência de mais 25 anos cruciais e momentosos que abalaram profundamente a fisionomia e as estruturas do mundo e, no nosso caso particular, da China, de Macau e de Portugal, onde ele passou algum tempo, logo após a implantação da República, depois do fim da I Grande Guerra e no período crítico e turbulento que poria termo à sua acalentada e desiludida I República, vivendo-os intensamente como actor e observador.

Cortesia de foriente

Ao passo que a 2ª edição de Historic Macao, publicada em Macau, foi o martírio e a perdição de Montalto de Jesus, a l.ª, publicada em Hong-Kong, 24 anos antes, em 1902 (Kelly & Walsh. Printers and Publishers) constituiu a sua glória, a sua consagração com historiador e como macaense. Bem recebida pelo público, pela crítica e, até, pelas autoridades de Macau, o Leal Senado louvou-o pelo seu valor e patriotismo e pelo grande serviço prestado à sua terra, foi por estas últimas considerada como sendo «o melhor trabalho de conjunto escrito até agora sobre o estabelecimento português na China Meridional» (Henri Cordier, no jornal Toung Pao). Esgotou-se rapidamente. Os seus patrícios, sobretudo os de Hong-Kong e de Xangai, guardaram-na religiosamente.

Ao elaborá-la, o autor teve em vista, sobretudo, rebater a até então predominante, mas duvidosa opinião do agente comercial e cônsul sueco residente em Macau (onde morreu), Andrew Ljungstedt, expressa no seu livro “An Historical Sketch of the Portuguese Settlement in China (1.ª edição Macau, 1932; 2ª edição, Boston, 1936), quanto à legitimidade da soberania portuguesa sobre Macau, que a seu ver, não passava de simples arrendamento com o pagamento de uma renda anual. Os argumentos apresentados por Montalto de Jesus, baseados em documentos coevos, foram decisivos para provar que desde 1557, a colónia portuguesa de Macau adquirira, de facto, cedida pela China, uma soberania plena e, sob o ponto de vista do direito internacional, legítima, cujo território constituía, contra ventos e marés, a única testa de ponte não só de Portugal mas também de todo o mundo ocidental e cristão na fechada China, até à Guerra do Ópio.

Cortesia de foriente

Montalto de Jesus escreveu a sua obra em inglês, quer para garantir uma maior divulgação internacional quer para que ela pudesse ser lida e entendida pelas numerosas famílias macaenses que desde o estabelecimento dos britânicos na vizinha ilha de Hong-Kong e da abertura dos Portos do Tratado (1839-41), emigrando de Macau, ali se fixaram e constituíram importantes comunidades portuguesas que muito contribuíram para o rápido e extraordinário desenvolvimento da britânica Hong-Kong e da internacionalizada Xangai, cidades que elas ajudaram a transformar em importantes empórios marítimos-comerciais, ao mesmo tempo que Macau, perdido o seu antigo e lucrativo monopólio de centro de todas as relações do Ocidente com a China, se deixava cair numa grave e crescente decadência. No seu conjunto, havia mais macaenses nessas comunidades do que em Macau, onde se julgavam mal apreciados e subaproveitados, ao passo que em Hong-Kong e Xangai eram bem-vindos pela sua educação, já de influência anglo-saxónica, cuja língua dominavam melhor do que a portuguesa castiça, pela sua experiência, pela sua eficiência e sobretudo, pelo seu conhecimento do chinês e do inglês, tornando-se assim, em excelentes e fiéis intermediários nas suas relações com os chineses. Montalto de Jesus pertencia a uma dessas velhas famílias macaenses imigradas em Hong-Kong e Xangai. Todas elas possuíam uma grande virtude, o seu enorme patriotismo, o seu entranhado amor por um Portugal só conhecido por tradição familiar e cuja memória lhes corria nas veias, fruto das afinidades de sangue com os seus distantes antepassados reinóis.

Esses macaenses do Extremo Oriente não compreendiam a incontida decadência de Macau, muito menos a associando ao cada vez mais deplorável estado em que o seu brumoso e lendário Portugal se encontrava, ultrapassado pela nova era iniciada com a revolução industrial e com o expansionismo colonial dominante nos países ocidentais, e, na altura, incipiente no Japão. Muito menos compreendiam as notícias que circulavam, no sentido de que Portugal, por necessidades económicas, pressões políticas, negociações internacionais e, até, por falta de capacidade administrativa e por exaustação, se dispunha a abandonar, vender ou trocar algumas das suas colónias, sobretudo as mais longínquas e pequenas, sabendo-se concretamente que a França era uma das mais cobiçosas quanto a Macau, como contraponto à britânica Hong-Kong». In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926, Macau Histórico, 1ª edição em Português, 1990, Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.

Continua
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT